O relato oficial da Polícia Federal revela, além dos fatos concatenados desde os primeiros momentos do governo Bolsonaro até a sublevação de 8 de janeiro de 2023, um grave problema que teremos de enfrentar mais cedo ou mais tarde: a fragilidade das normas democráticas diante de corporações fardadas e armadas. O fato de Bolsonaro ter apresentado a dois comandantes militares, general Freire Gomes, do Exército, e brigadeiro Baptista Junior, da Aeronáutica, a minuta do golpe, sem consequências punitivas imediatas, revela a facilidade com que um presidente da República faz lobby por um golpe de Estado — e a dificuldade que militares democratas encontraram para superar essa situação sem criar uma crise institucional que, no limite, poderia até facilitar o golpe.
O comandante do Exército, general Freire Gomes, advertiu Bolsonaro de que ele poderia ser preso se levasse adiante tal iniciativa, mas não encontrou condições reais para prender o presidente em flagrante delito. Um coronel rebelado que enviou a ele uma mensagem de WhatsApp agressiva e impertinente tampouco foi colocado nas grades e continuou conspirando. A hierarquia quebrada nesses e noutros episódios dessa sedição fracassada mostra a delicadeza da questão, fazendo com que o comandante em chefe das Forças Armadas possa agir de maneira ilegal sem ser contido. Se fosse um presidente civil, a reação seria a mesma? Não creio.
Bolsonaro, em sua defesa, saiu-se com uma alegação completamente estapafúrdia: como ele ainda era presidente, não poderia haver golpe, pois Lula não havia tomado posse. Fingiu desconhecer o “autogolpe”, que já aconteceu no Brasil com Getúlio Vargas na Venezuela com Hugo Chávez e que o general Hamilton Mourão, seu vice, ainda na campanha presidencial, admitiu pela primeira vez ser uma possibilidade real. Não digo que falou isso porque o grupo já cogitasse, mas Bolsonaro dizer o que disse é abusar da paciência alheia.
Já está claro o que aconteceu na tentativa de golpe de Bolsonaro. A investigação da Polícia Federal foi minuciosa e mostrou que o então presidente era quem comandava tudo. A teoria do domínio do fato, que pegou no mensalão José Dirceu, ex-todo-poderoso do primeiro governo Lula, agora pega Bolsonaro também. Evidente que ele não dava ordens a seus comandados por escrito ou gravava áudio, como alguns de seus seguidores chegaram a fazer, mas tinha o controle da situação. Os amotinados dependiam da autorização de Bolsonaro para fazer o que fizeram; e fizeram muita coisa.
Vigiaram o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, compraram telefones para conversas clandestinas, se reuniram para planejar o golpe. Tudo era repassado a Bolsonaro que, no final, quando viu que o Alto Comando do Exército não o apoiaria, desistiu e fugiu para os Estados Unidos, vendendo joias que não lhe pertenciam para sustentar sua permanência no exterior. A trama continuou por aqui. Na diplomação de Lula houve uma tentativa de criar um tumulto social em Brasília e no 8 de janeiro mais ainda. Esses tumultos visavam a criar uma situação social para obrigar a intervenção das Forças Armadas que, nem assim, aderiram ao golpe.
Há provas testemunhais de conversas entre os então comandantes militares e o presidente sobre o assunto. Ficou claro que a parte legalista do Exército não aderiu, e Bolsonaro não deu o golpe porque estava impossibilitado. Afirmou por estes dias que pensou em adotar estado de sítio, mas só cogitar isso sem que houvesse razão para tal já é uma espécie de confissão pública de que procurava soluções “dentro das quatro linhas” para impedir a posse de Lula. Soluções constitucionais para implantar um regime inconstitucional.