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Democracia prevaleceu

 

Uma decorrência do fracassado golpe militar organizado por partidários radicalizados do então presidente Bolsonaro é o fortalecimento institucional do Alto Comando das três Forças Armadas, sobretudo a mais decisiva delas, o Exército. Nele, segundo as contas dos golpistas, “três querem muito, cinco não querem, e o resto fica na zona de conforto”, referindo-se aos generais de quatro estrelas que, no final das contas, decidem a parada.

Decidiram a favor da sustentação da democracia, mesmo que provavelmente a maioria não gostasse da vitória de Lula. Essa geração militar que manteve um embate surdo nos bastidores é formada por grupos que ainda se ressentem de ter perdido o poder com o fim da ditadura militar iniciada em 1964, e grupos democráticos que entenderam que a experiência ditatorial não foi boa para a farda nem para o país.

Essa tendência democrática se impôs no Alto Comando e não permitiu que os aloprados bolsonaristas prevalecessem. Foi bom para o Brasil. Resta agora preservar um ensino militar baseado na compreensão de que a democracia é o melhor regime entre todos já testados, e que aos homens armados cabe entender que representam a defesa do Estado brasileiro, e não este ou aquele governo. Não cabe aos militares dar palpite sobre os caminhos do governo, assim como não cabe aos juízes falar em público sobre casos que serão julgados por eles.

A ideia de escolas cívico-militares é típica de governo autoritário, que pretende impor à sociedade civil diretrizes educacionais que nada têm a ver com a função das Forças Armadas. As orientações no âmbito da educação devem ser dadas pelo Ministério da Educação, com validade para todo o país, e não há por que misturar os militares com questões tipicamente civis. Os áudios dos envolvidos no planejamento do golpe mostram o grau inferior em que se colocam, usando um linguajar rasteiro que se assemelha ao de seu líder.

Diante de tudo o que foi revelado, com áudios, vídeos, depoimentos, é surpreendente que Bolsonaro mereça o apreço de colegas de farda que deveriam liderá-lo, e não serem liderados por ele. A confissão dele de ter tentado duas vezes sem sucesso ser um “kid preto”, membro das forças especiais, núcleo que comandou a frustrada tentativa de golpe, mostra bem a índole de Bolsonaro. Ele ainda ressalta que não se tratou da parte física que, pelo visto, é a mais importante no entender dele. Combina com a definição do seu ex-vice-presidente, general Mourão, ao dizer que Bolsonaro só participou da parte física da formação militar, não chegando à parte intelectual.

A insurreição malsucedida trouxe de volta ao Exército a chaga da atuação na ilegalidade. Estava óbvio que o momento interno e externo não era propício a esse tipo de empreitada, comum nos anos da Guerra Fria, mais ainda em países de baixo teor democrático. Hoje não é o caso do Brasil. Nossas instituições resistiram ao lado da democracia, mesmo que abusos de poder possam ser apontados dos dois lados.

Bolsonaro, quando presidente, abusou claramente de seu poder político, levando os militares a fazer papelões como o desfile de tanques fumacentos como forma de pressão sobre o Parlamento, ou dando ordens para que aviões sobrevoassem o Congresso para tentar quebrar vidraças. Não foram poucos os discursos presidenciais que romperam a barreira da legalidade, com ameaças aos outros Poderes, especialmente ao Supremo Tribunal Federal. Que, por sua vez, para combater os ataques antidemocráticos, exagerou diversas vezes em suas prerrogativas. Mesmo a vitória de Trump nos Estados Unidos não parece ter o condão de mudar a tendência mundial, que pode estar inclinada para a direita, mas não para a ilegalidade.

O Globo , 26/11/2024