Ignácio de Loyola Brandão é um trovador moderno que entendeu Araraquara, no interior paulista, e o Brasil ao longo de uma carreira repleta de feitos e reconhecimentos. Então, se quase ninguém à época dos anos 1950 poderia imaginar que aquele filho de um ferroviário e de uma dona de casa —que observava com fascínio os bailes do Clube Araraquarense, mesmo sem poder entrar— se tornaria o grande cidadão e cronista de sua cidade natal em toda história, talvez ele mesmo sempre soubesse.
Com sua ironia e lucidez, Ignácio se tornou um dos maiores nomes da nossa literatura, e o mundo ao seu redor foi rápido em reconhecer o tamanho de sua obra. Ao longo de décadas, escreveu de livros infantis a romances, livros de memórias e grandes reportagens, mantendo uma troca singular com Araraquara, para onde retorna com o carinho e respeito, ao mesmo tempo que a terra natal lhe retribui com todas as láureas.
Por isso, a honra de ser escolhida por ele como autora homenageada do Festival Literário da Morada do Sol, o Flisol, deste ano é algo que transcende o trivial e me mergulha em memórias de gratidão e paz ao lado do meu querido amigo.
Ficam também os cumprimentos a Bernardete Passos, diretora do Flisol, que vem desenvolvendo um belo trabalho pela cultura da cidade.
O festival chegou à sua terceira edição após homenagear Zé Celso e Mário de Andrade, dois ícones da cultura brasileira com raízes nessa terra. Zé Celso, além de marcar o nome na história do teatro brasileiro, nasceu em Araraquara e foi amigo de infância de Ignácio. Já Mário de Andrade escreveu seu clássico "Macunaíma" na Morada do Sol.
Se ser lembrada já seria uma honra por si só, a Flisol mostrou como se pode ir além. Durante o ano, alunos e alunas da rede público de ensino da cidade, de Matão e de outros municípios vizinhos, fizeram leitura das minhas obras e escreveram cartas para mim, em homenagem ao "Cartas para Minha Avó".
O encontro com a rede de ensino ocorreu no dia seguinte à mesa na Casa Afro Brasil, um lugar de respeito à ancestralidade brasileira, fruto de mobilização do movimento negro da região, que, por sua vez, organiza uma das mais antigas festas de rua do Brasil.
O Baile do Carmo é uma celebração tradicional desde o século 19. A festa teve início em 16 de julho de 1888, quando o escravizado Damião reuniu seu povo para cantar e dançar a secular "Dança da Umbigada". Agradeço à professora Valquíria Tenório pelos ensinamentos sobre a festa.
Nos dias que passamos no belo e revitalizado Hotel Municipal de Araraquara, próximo à Praça da Matriz, Ignácio prosseguiu conversas generosas que temos tido por emails nos últimos anos. A primeira vez escreveu sobre mim foi na minha posse na Academia Paulista de Letras, onde somos confreira e confrade.
Quando vi, fui dominada por intensa felicidade. Depois, jantamos em Ribeirão Preto, onde participamos da Feira do Livro, e aí a amizade engrenou e o amor floresceu.
Desde então, quando caminho para a universidade onde leciono em Nova York, fico pensando na próxima mensagem eletrônica que trocaremos. Lembro-me de quando soube que iria lecionar nos Estados Unidos, escreveu com o todo o entusiasmo. "Vá, Djamila, engula e vomite Nova York."
Fico pensando se Ignácio sabia do itã de Exu que engoliu todas as coisas do mundo e vomitou-as depois, dando-lhe sentido em tudo. Exu é o orixá da comunicação e somente por meio dele que podemos acessar os outros orixás.
Em nossas conversas na última semana, Ignácio reviveu histórias com Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector, Jorge Amado e Carolina Maria de Jesus, revelando detalhes que pareciam trazer essas pessoas para perto, como se fossem nossas interlocutoras também.
Lembrou-me de Exu, que é capaz de acertar um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje, o que reflete sua habilidade em transitar entre o passado, o presente e o futuro.
Assim como Exu, que abre caminhos e transforma encruzilhadas em possibilidades, Ignácio é também um mensageiro e guardião de histórias, um cronista que desafia os limites do tempo. Suas narrativas resgatam figuras, contos e episódios com uma habilidade que transcende o mero relato, infundindo em cada história um toque de eternidade.
Tive a honra de receber antes da publicação o livro que escreve para sua neta Antônia, esse movimento circular entre o mais velho e a mais nova, uma declaração de amor e esperança no futuro. Sua amizade é um presente, e sua homenagem, motivo de muita emoção.
Ignácio é um gigante e, ao mesmo tempo, um homem de gestos simples, amável, aberto aos outros com uma disponibilidade ímpar. Que sorte a nossa conviver com tamanha grandeza.
Matéria na íntegra: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/djamila-ribeiro/2024/11/ignacio-de-loyola-brandao-trovador-de-araraquara-e-autor-gigante-e-amavel.shtml
21/11/2024