A solução mais óbvia para tratar a candidatura de Pablo Marçal com a letra da lei é cancelá-la, pois ele claramente é um político à margem do sistema eleitoral regulamentar. Existe essa possibilidade real e, se o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidir nesse sentido, responderá a uma reivindicação justa, pois o candidato tem muitas dívidas com a Justiça. Mas, se é justamente por ser antissistema que ele tem tido bom desempenho nas pesquisas eleitorais, seria uma decisão sábia retirá-lo da contenda?
Será preciso avaliar com ponderação para ver até que ponto a democracia estará preservada por uma decisão do TSE. Do ponto de vista prático, seria uma solução, já que ele se aproveita do debate democrático para subverter a eleição, base do sistema representativo de democracia que escolhemos adotar. Não respeita as regras do jogo, por isso se torna tão atraente a um nicho eleitoral que continua querendo o sangue do sistema político tradicional, assim como faz desde 2018, quando elegeu Bolsonaro, que deu vida a Marçal e perdeu o controle da situação.
Ao escolher o prefeito Ricardo Nunes como representante de seu grupo, Bolsonaro trabalhou com critérios tradicionais da política, avaliando que a máquina municipal daria a vitória a ele. Tudo caminhava normalmente, com a previsão de que Nunes ganharia de Boulos no segundo turno com facilidade, quando apareceu Marçal, assim como Bolsonaro surgiu do nada em 2018 para surpreender a classe política.
Seus seguidores não entendem por que Bolsonaro critica Marçal ou então por que apoia um candidato tão insosso quanto Ricardo Nunes. Houve um recuo estratégico do clã Bolsonaro, que desistiu de brigar em público com seu antigo aliado, e não será surpresa se se passarem de mala e cuia para o lado de Marçal. É uma situação difícil para eles, pois será uma demonstração de força de Marçal, que os submeterá a seus desígnios políticos, retirando do ex-presidente a aura de inatingível.
Bolsonaro, que troca de legenda como troca de camisa, perderia parte de seu encanto, a menos que rompesse com Nunes de maneira espetacular. Mesmo Bolsonaro, que já está dentro do sistema que fingia repudiar quando se elegeu em 2018, sofreria desgaste razoável, se restringiria a um espaço político reduzido, quando, para vencer uma eleição nacional, precisa mais que nunca de uma estrutura partidária sólida.
Tendo sido presidente da República, Bolsonaro já não cabe no figurino de rebelde sem causa, que ainda cabe em Marçal. Mesmo sem querer aparentar, Bolsonaro hoje é parte decisiva do sistema político brasileiro, o que lhe dá desvantagem em relação a Marçal, um franco-atirador que tem todas as qualidades e defeitos de um aventureiro, papel que já foi de Bolsonaro e hoje não lhe pertence.
Se ainda há espaço para um tipo como Marçal arvorar-se de salvador da pátria, algo está errado na nossa política partidária ou, mais profundamente, na nossa sociedade. A longo prazo, a solução é a educação cívica da sociedade, mas, de imediato, os partidos poderiam trabalhar as candidaturas com mais cuidado. Superado o impasse atual, com uma vitória ainda improvável de Marçal, mais facilmente com sua derrota, teremos de tratar das causas desse sintoma que coloca em risco a democracia. A busca de votos a qualquer preço fez com que os partidos políticos fossem atrás dos que eram populares, como cantores, atores, locutores.
A classe política precisa se convencer de que cava sua própria cova ao tratar as questões parlamentares com a visão apequenada dos interesses pessoais. Apequenar a atividade parlamentar abre portas a aventureiros, que já marcam sua presença no Congresso.