Cada vez mais desconfio de que o Congresso não representa, necessariamente, a vontade do eleitor médio brasileiro, como alegam quando se aponta alguma barbaridade maquinada nos bastidores por Suas Excelências. A começar pelos métodos que foram incorporados nas campanhas eleitorais. Candidatos só entram em algumas regiões, no Brasil todo, se tiverem proteção de milicianos e facções criminosas. Esses votos já estão contaminados. Mulheres e minorias são manipuladas pelas direções partidárias, que controlam quem tem acesso a financiamento público. Acordos políticos na surdina comprometem votos por interesses pessoais.
Vejamos a aberração, gerada na bancada evangélica, que compara a homicídio um aborto depois de 22 semanas de gravidez. Deveria ter sido abortado, mas só a reação da opinião pública teve força para impedir que o Projeto de Lei fosse à votação, embora ainda não tenha sido arquivado. Nem todos os deputados que aprovaram a urgência da matéria concordam com o mérito, mas, como a votação simbólica não marca os parlamentares, todos aceitaram participar da farsa para não perder eleitores entre os evangélicos. Talvez até votem a favor do projeto, mas isso não quer dizer que seus eleitores aprovem.
O que marca mesmo as decisões no Congresso são interesses pessoais dos deputados e senadores, acima das ideologias. São raros os parlamentares que mantêm sua posição apesar da pressão de grupos, os “formadores de opinião”, que se elegem por nichos de eleitores. Tão raros que têm mais chances de não renovar seus mandatos do que aqueles que vão com a maioria, mesmo que não pensem igual.
Há também os interesses cruzados, uma troca de favores entre grupos, o que acontece agora mesmo, no momento em que se definem os candidatos à sucessão de Arthur Lira na presidência da Câmara. Aliás, a enxurrada de projetos de leis que ele desengavetou neste final de primeiro semestre é tão flagrantemente eleitoreira que desmente a postura de grande líder político que Lira pretende transmitir. Comporta-se como um coronel político que não deveria ter mais espaço nos dias de hoje, na tentativa de escapar da maldição dos ex-presidentes da Câmara que, invariavelmente, nos últimos anos somem da política assim que perdem o poder.
Não há mais Ulysses Guimarães nem Michel Temer, que dominaram a Câmara por anos a fio, mesmo quando fora da presidência. Hoje a paga pelos favores tem de ser feita de imediato, nada de longo prazo. A busca desesperada de Lira para se manter acima da linha-d’água provoca uma crise institucional que mina sua atuação e desgasta mais ainda a imagem do Congresso.
Não é possível que uma legislação sobre aborto legal, aprovada em 1941, seja reescrita em pleno 2024 para impor um retrocesso social ao país por uma maioria circunstancial, formada por reacionários de todos os tipos e impulsionada por acordos políticos espúrios.
A leniência com que os parlamentares tratam seus próprios interesses é outro tema que demonstra a que vieram os deputados e senadores. Anistias dos mais variados graus, desde às multas partidárias por desrespeito à legislação eleitoral até a quem participou da tentativa golpista na Praça dos Três Poderes em Brasília. Desengavetam-se projetos adormecidos por inviáveis, como o que pretende permitir o trabalho infantil indiscriminado, pois a legislação já incentiva trabalho infantil como aprendiz. Não dá para permitir crianças de 14 anos em trabalhos que exijam esforço físico ou ambientes inadequados.
Parlamentares dessa laia, que não se dão ao respeito que mereceriam por ser representantes do povo, ajudam a desacreditar as instituições. Políticos desse tipo são vistos como “gatos gordos” que vivem à custa dos cidadãos comuns e têm garganta profunda, onde sempre cabem mais verbas e regalias. Não é assim que se chegará a um final feliz nesta nossa trajetória ziguezagueante.