No fim dos anos 1960, eu havia terminado meu terceiro longa-metragem e me preparava para lançá-lo comercialmente quando o golpe civil-militar de 1964, já instalado com todo um acervo de defesas regulares que incluíam uma censura rigorosa, se consolidara.
Eu estava casado com Nara Leão, minha primeira esposa, com quem falava muito sobre o que fazer, e a ouvia ansioso, sabendo de sua experiência na resistência cultural à ditadura. (Só encontrei suporte e afeto parecidos com Renata Magalhães, com quem tive a sorte de casar em seguida). Por sugestão de Nara, entrei em contato sincero com o ministro da Justiça, responsável pela censura no país.
Três das muitas restrições feitas por ele eram, no meu entender, as mais difíceis de atender. E certamente as mais importantes pro ministro.
A primeira se referia ao título, “O brado retumbante”, inspirado em verso de nosso Hino Nacional. A segunda era sua desaprovação à longa cena em que o muito popular Sérgio Cardoso, a estrela do filme, ouvia a leitura da carta-testamento de Getúlio Vargas enquanto andava pelas ruas da cidade passando por cartazes com a figura desafiadora do presidente suicida. E a terceira, que eu não via como solucionar, seria a alteração da última sequência para que tudo terminasse com o suspiro de alguma esperança.
Havia também sugestões de cortes ao longo do filme que tirariam dele seu caráter crítico e, segundo os censores, pessimista demais.
Voltei para casa arrasado. Não via como realizar todas aquelas modificações, não seria fiel a meus sentimentos e ao pensamento sobre tudo o que acontecia. Nara me fez tomar um banho quente e, na banheira, conversamos muito mas sobretudo sobre tudo o que me havia dito o ministro em nome dos censores.
Eu ainda não tinha decidido o que ia fazer quando recebi um telegrama. Enviado em nome dos responsáveis pelo cinema italiano, seu texto me lembrava da importância artística e política que eu e o filme tínhamos em relação ao que acontecia no Brasil. E ainda citava o Cinema Novo como um espaço futuro para o novo protesto, como tínhamos feito no passado.
Quem encabeçava as assinaturas era Bernardo Bertolucci, em nome dos que me conheciam e queriam ver meu filme em Veneza. Compreendi que tinha nas mãos a arma mais eficaz para o filme se livrar da censura e, quem sabe, acabar no festival.
Não foi difícil convencer o ministro e seus colaboradores do escândalo internacional caso o filme não fosse liberado para o exterior e, mais particularmente, para o Festival de Veneza. Depois de muitas dúvidas e consultas, foi enfim o que aconteceu. O golpe no Brasil ainda era um mistério internacional, ninguém sabia direito suas consequências. Era preciso tomar um certo cuidado.
O ministro propôs nos dar o passaporte, mas com a validade de apenas um mês. Eu iria para Veneza e na volta ainda teria tempo de discutir o lançamento e a censura do filme. Eu lhe disse que não era louco de deixar minha mulher sozinha. Só podia aceitar o acordo se ele incluísse também a liberação do passaporte de Nara. Ele topou.
Em contrapartida, aceitei trocar desde já o nome do filme que passou a se chamar “Os herdeiros”, título que já tínhamos escolhido desde algum tempo, com a intenção de resistir à boçalidade da censura. Uma palavra que sempre usei como referência de uma família, um grupo de pessoas com as mesmas ideias, disposto a mudar a raiz e os rumos de um país. Como nunca me manifestei publicamente sobre o que havia acontecido, era como se “Os herdeiros” fosse um título encontrado por nós mesmos e ao azar diante do desgosto com o título original.
Conscientes do que havíamos feito e já com a cabeça se acostumando a “Os herdeiros”, partimos para projetar o filme na Europa e nos preparamos para um lançamento cheio de apoios, vaias e aplausos. Mas antes era necessário explicar o que significava o filme, com aquela trama e aquele ponto de vista político pouco heroico, aquilo que a gente chamou de poema audiovisual sobre o fracasso de uma revolução tão cheia de boas ideias.
O poema triste não inaugurava nenhum tempo novo; ao contrário, era apenas um sinal do fracasso de uma geração. O Cinema Novo é que iria em busca da razão de nossa existência, do sentido dos poemas, da vida e dos filmes que iríamos fazer.