A escolha do primeiro indígena imortal pela Academia Brasileira de Letras (ABL) carrega uma série de significados. Representa, em primeiro lugar, um notável avanço cultural. A casa de Machado de Assis, o patrono da imprensa nacional, concedeu a Ailton Krenak a maior honraria literária a um descendente dos povos originários. Tratados durante séculos pela literatura e pela história como seres exóticos, de hábitos rudimentares e organização social primitiva, os indígenas passam oficialmente a fazer parte do mosaico representativo da cultura brasileira. Uma tradição imemorial no Brasil, massacrada pelo colonialismo europeu, abandona o papel submisso e ocupa um relevante espaço de reflexão nacional.
Ao agradecer a honraria, o novo imortal sinalizou uma das primeiras iniciativas a serem desenvolvidas: a inserção das línguas indígenas no acervo da ABL. Forma-se um paradoxo fascinante: o olimpo das letras brasileiras se dedicará a preservar a oralidade, traço essencial da cultura e da comunicação indígena. Um ponto de partida seria a expansão da biblioteca Ailton Krenak, espaço virtual que reúne pensamentos, entrevistas e outras manifestações deste pensador, ambientalista, escritor e ativista dos direitos indígenas.
Para quem considera uma iniciativa menor o esforço de integrar a linguagem indígena ao repertório cultural do Brasil, convém lembrar que o Supremo Tribunal Federal, em julho último, lançou uma edição da Constituição Federal na língua Nheengatu, como forma de reconhecimento dos direitos indígenas. Na solenidade, realizada em São Gabriel da Cachoeira (AM), a então presidente da Corte Suprema, ministra Rosa Weber, resumiu: “Levamos 523 anos para chegar a este momento, que considero histórico”.
É incalculável a dívida histórica que o Brasil tem com os povos originários. O resgate a a ser efetuado em nome das etnias que, muito antes de o país se formar como nação aos moldes europeus, tinham uma organização social e uma relação com a natureza completamente diversa, vai muito além do reconhecimento concedido pelos membros da ABL. Nesse sentido, ganha ainda mais relevância – e portanto, responsabilidade – a discussão de temas complexos, como o marco temporal, medida que pôs em campos opostos o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional.
Convém registrar, nesse sentido, o pioneirismo e a coragem de Ailton Krenak. É emblemática sua participação na Constituinte de 1987 ao pintar o rosto com tinta negra de jenipapo na tribuna da Câmara dos Deputados. Tal qual um herói amazônico, o ativista alertava para o luto dos povos indígenas pela sistemática anulação de seus direitos. Foi graças a gestos como esse que a Carta Magna, que completou 35 anos na última semana, dedica especial atenção aos primeiros habitantes desta terra chamada Brasil.
O país ainda precisa fazer muito para dar uma reparação histórica justa aos povos originários. Há muitas frentes a serem empreendidas, do ponto de vista fundiário, social, educacional e até sanitário. Espera-se que os ocupantes do poder público e a sociedade tenham sensatez para conduzir esse necessário processo. A Academia Brasileira de Letras deu um passo importante nesse sentido. Como disse Machado de Assis no discurso da casa que inaugurou em 1897, a ABL tem “alma nova, naturalmente ambiciosa”. Almeja buscar, “no meio da federação política, a unidade literária”. Oxalá a nação brasileira se inspire nessas palavras.
Matéria na íntegra: https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2023/10/5131886-visao-do-correio-o-simbolismo-de-um-indigena-imortal.html
09/10/2023