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ABL na mídia - Sibila - Secchin: “imortal com data de validade”

 

Secchin, nós nos conhecemos, pessoalmente, em 2007. E através de uma amiga querida, a professora da Sorbonne Nouvelle, Paris3, Jacqueline Penjon. Naqueles dias nos vimos algumas vezes seguidas, em função da Jacqueline ter chegado ao Rio, e sempre estivemos em encontros festivos e repletos de arte e literatura. Mas, agora, vamos falar de poesia. Você poderia relembrar um pouco o seu caminhar com o poeta João Cabral de Melo Neto, que participa tanto de seus textos como de seus estudos, e a quem você conheceu, pessoalmente? Como João Cabral o estimulou não só em poesia, mas no amor ao livro, livro como objeto, arte e encanto que se estende em sua vida de poeta e Acadêmico?

Atuava como leitor brasileiro na Universidade de Bordeaux, e em 1977 entrou a Antologia poética de João Cabral no programa dos concursos franceses para o ensino do português. Preparando as aulas, mais e mais me entusiasmava por sua poesia, e substituí por João Cabral o tema da dissertação de mestrado que apresentaria no retorno ao Brasil, em 1979 – anteriormente, pensara em Raul Pompeia. Assim ocorreu: defendi a dissertação e meu orientador, Afrânio Coutinho, repassou o estudo ao poeta. Cabral foi extremamente receptivo a meu trabalho, desde nosso primeiro encontro, em 1980. Continuei a estudar sua obra na tese de doutorado e em ensaios avulsos, e disso resultou meu João Cabral de ponta a ponta, livro de quase 600 páginas, publicado pela CEPE, numa linda edição. Tive dezenas de encontros com ele, que sempre me recebeu com a maior amabilidade.

O poeta e ensaísta de hoje nos levará pelas mãos nesta conversa por escrito em caminhos, labirintos e estantes porque sabe o sabor da leitura e a importância do livro. Então o que você pode ainda nos dizer sobre a escrita, sobre o lugar da palavra? Escrever poesia o que é para você?

Escrever poesia é a perpétua tentativa de expandir o território da linguagem. A poesia infiltra o veneno nas práticas cristalizadas do idioma. Daí eu considerar a poesia como a “doença” da língua e a saúde da linguagem. Ao ouvir essa formulação, um aluno complementou: Sim, como a pérola decorre de uma “doença” da ostra.

Na infância e na adolescência, Secchin, onde vivemos as raízes de nossas histórias pessoais, e a sombra e o medo, que, no entanto, nos acompanham, como você alcançou e tocou os livros mais preciosos daquele tempo? E quais foram eles? Havia os livros proibidos?

Cresci numa casa sem livros, mas felizmente próxima da Biblioteca Regional de Copacabana, onde li tudo que podia, dos 12 aos 17 anos, quando ingressei na Faculdade de Letras. Desse período adolescente, sempre registro a importância de Drummond, com A rosa do povo, que li aos 13.

Sei que você caminhou com a literatura como pesquisador também, e que se dedicou como professor de Literatura Brasileira da UFRJ durante décadas antes de ser um Acadêmico, mas sempre escrevendo poemas. Nos conte um pouco sobre tudo isso. O professor e o poeta andavam lado a lado, ou não?

Sim. Inclusive nos longos períodos de maré baixa em termos de produção de poemas, tentava cultivar a poesia nas aulas e nos ensaios. Duplamente: não só porque praticamente só dei aulas de poesia e escrevi sobre ela, mas porque tentava que a escrita ensaística fosse também poética, sem deixar de ser rigorosa.

A decisão de construir uma biblioteca tão grande e importante quanto a que você possui hoje foi uma escolha pensada? E as inúmeras estantes ao redor das paredes de sua casa foram brotando com as multiplicações das leituras ao longo da vida acadêmica ou depois?

A biblioteca começou a formar-se um pouco à minha revelia. Só fiz seguir o que ela me impunha, inclusive mudando duas vezes de domicílio para acomodar sua expansão. Não foi algo, até determinado momento, planejado. Só beirando os 40 anos dediquei-me com mais afinco à bibliofilia.

Livros raros, sebos, os livros presenteados, as coleções de livros antigos, as revistas etc. Como se organiza uma biblioteca lúcida e contemporânea?

Vamos distinguir a biblioteca “de trabalho” da “de bibliofilia”. Na primeira, o objeto livro não costuma ser tão considerado, e sim o que ele veicula. Na segunda, o objeto é tão ou mais importante do que o simples conteúdo: trata-se de primeiras edições, tiragens reduzidas, dedicatórias importantes, tudo, enfim, que singulariza um exemplar. Muitas vezes, o bibliófilo salva do esquecimento um autor que só sobreviveu graças à obstinação do colecionador em encontrá-lo. Reinseridas no circuito, em reedições ou edições fac-similares, as obras ressuscitam, voltam a produzir efeito. Como disse numa entrevista, salvamos os livros para que eles nos salvem.

Há os livros mais amados em suas estantes? Quais são os mais manuseados? Você gosta dos dicionários? Você os frequenta, Secchin?

Tenho estantes com centenas de dicionários, de todos os tipos. Também cultivo as antologias, demonstrativas da sedimentação ou da mudança do cânone. Mas sou bastante infiel no que se refere a livros mais queridos.

O poeta e o ensaísta andam juntos, certamente. Mas e o Acadêmico, por onde ele passeia?

O acadêmico foi consequência desse amor à literatura, aos livros e aos ambientes onde esses amores fossem bem recebidos. Fico feliz em integrar uma Academia que está sabendo admiravelmente conjugar cultivo da memória e abertura ao presente.

Esta conversa livreira quer incluir o gesto da escrita e da leitura nos hábitos do colecionador/bibliófilo. Você, meu caro, tem alguma mania ou obsessão com os livros que adquire? Há horários para ler ou escrever diariamente? Ou uma poltrona preferida ou um raio de luz na janela?

Não tenho práticas ritualísticas de leitura e de escrita. Bastam a tela do computador, as folhas do livro (não sou de e-books). E o silêncio, muito silêncio.

Sei que sua biblioteca é enorme, hoje em 2025 já são mais de trinta mil livros. Você e sua biblioteca se misturam. Este amor ao livro só cresceu e o envolve por inteiro e o gratifica muito. Mas, há a trabalheira e o custo com a manutenção dos livros. Você foi se realizando neste pedaço de mundo enorme. Imagino que haja uma grande alegria. Você consegue pensar que vai sobreviver nesta criação tão complexa? Digo: livros, poemas e biblioteca? Nesta tão singular quanto generosa ‘equação’ de criação?

Na condição de “imortal” com data de validade, claro que me preocupa o destino da biblioteca quando essa data se impuser. A hipótese da dispersão é bastante incômoda. Já estou me movimentando para ter o conforto de saber que o acervo há de manter-se, inclusive preservando a configuração que lhe imprimi, baseada, principalmente, na cronologia das obras.

Matéria na íntegra: https://sibila.com.br/cultura/secchin-imortal-com-data-de-validade/15560

06/05/2025