As copas e os torneios no exterior que pelé disputou pelo Santos tornaram-no um mito esportivo e social
Eu tinha acabado de completar 10 anos de idade e ouvia sozinho, no rádio da sala, a final da Copa de 1950 contra o Uruguai, uma moleza para quem já tinha derrotado por goleada dois europeus de prestígio. Quando o locutor anunciou o fim do jogo me danei a chorar. Fui então para a varanda tentar esquecer a desgraça e lá senti que não passava mais nada pela rua São Clemente, a via movimentada em frente à nossa casa. Meu irmão mais velho me disse que agora seria sempre assim, ninguém ia se expor depois do vexame da Seleção.
Percebi então que a São Clemente não era mesmo tão movimentada assim. Eu devia estar era influenciado pela lembrança dos carros que passavam buzinando alto, dois anos antes, quando o Botafogo se sagrara campeão numa decisão ali perto, na rua General Severiano.
No jogo com o Uruguai, não ouvi nem falar na promessa de um adolescente que já jogava com assombro no Baquinho, um time juvenil de Bauru, em São Paulo. Ele vira seu pai chorando com a derrota do Brasil e havia prometido a ele trazer um dia a Copa do Mundo para casa. O menino se chamava Edson e, atendendo ao pranto de Dondinho, não trouxe uma Copa do Mundo para o Brasil. Trouxe três.
As Copas e os torneios internacionais que disputou pelo Santos, o único time brasileiro em que jogou, transformaram-no num ser do mundo, um mito esportivo e social. Quando, no pós-guerra, nos submetemos aos países do lado Ocidental, sem nenhuma chance de variar um pouco, Edson Arantes do Nascimento se tornou um herói paparicado por nós, por nossos vizinhos e por todos os que torciam pelo “clube” capitalista.
Quem lutava pela libertação do Brasil desse sistema, até que tentou se livrar dele. Sobretudo na criação de uma cultura que nos representasse, levantando nossas tradições e costumes populares. Mas em 1964 a ditadura não nos deixou mais exercer esse papel e cada um de nós procurou uma solução pessoal, ligada à ideia que nos orientava.
A Copa do Mundo de 1970 ocorreu quando meus filmes eram perseguidos, além de eu e minha mulher estarmos visados pelo governo militar. Demos um jeito de cair fora, fomos para a Itália e depois para a França, tentando nos livrar da perseguição política e planejando um filho que acabou nascendo em Paris, em 1970, quando estávamos, eu e sua mãe, em fuga declarada do Brasil. O sorriso de Isabel nos braços da mãe me convenceu de que era aquilo mesmo que tínhamos a obrigação de fazer.
Em Paris, decidimos ver os jogos da Copa pela TV francesa. E, por uma questão de coerência, não torceríamos pelo Brasil. Mas bastou Pelé dominar a bola no meio de campo e enviá-la à meta inimiga, deixando de fazer o gol por alguns centímetros, para passarmos a torcer adoidado pelo Brasil. No final da Copa, jurei nunca mais ficar contra a Seleção, fosse qual fosse o nobre motivo.
Sempre sonhamos com o mundo se voltando para o Brasil, no final de um período de crise planetária. Esse era o destino do país, um destino especial que ia reorganizar os povos do mundo. Isso era indiscutível, um destino que não se comprometia com nada em qualquer canto do planeta. Uma solução que salvaria a humanidade, longe dos conhecidos e desmoralizados princípios do capitalismo e do socialismo, a disputa em que o mundo se empenhava equivocadamente. E o instrumento desses novos tempos era alguma coisa como Pelé.
Pelé não se parecia com nada que já estivesse existindo. Além do futebol surpreendente e lindo que praticava, o fazia com tanta distância do conhecido que ninguém conseguia dizer o que era. Através dele, o Brasil se tornava o novo e mais valioso mistério do planeta. Pelé não só fazia do Brasil uma cultura, como era também capaz de produzir uma nova humanidade da qual nos orgulharíamos. O Rei se tornava um personagem do escritor escocês Hugh McIlvaney, citado por João Máximo: “Estou convicto de que existe entre Pelé e Deus uma relação pessoal mais íntima do que a do comum dos mortais”.
E o comum dos mortais éramos nós, representados por ele, Pelé.