Criança, certa época do ano, acompanhava meu avô José na busca de içás. Uma aventura. Passávamos o dia no campo, voltando com um saco de insetos, que eram fritos na banha de porco e comidos crocantes como iguaria deliciosa. Hoje não repetiria a façanha. Nasci sem preconceitos alimentares, depois me corrompi. O que não me impediu de ter curiosa experiência, quando, a convite da Espanha, jantei no El Bulli, templo da comida tecnológica de Adrian Ferrá na Catalunha. Entre uma espuma de azeitona e uma ostra desconstruída degustei 31 pratos.
Não sei fazer ovo mexido e lamento porque acho a gastronomia um encanto. Alguns de meus melhores amigos são do ramo como Josimar Melo, Caloca Fernandes, Dias Lopes, Bernard Twardy. Mais os falecidos Saul Galvão e Nina Horta. Sem esquecer que Carolina Brandão, do Las Chicas, que começou carreira com Carla Pernambuco, no Carlota, e alçou voo próprio, é minha sobrinha. Meu irmão Luis era mestre na paçoca de carne-seca o que levou Bento Prado, considerado filósofo da UFSCar, a Araraquara. Regalou-se. Dia desses citei o “virado de banana” da tia Maria. Surpreso, vi a Rita Lobo se manifestar com simpatia na internet.
O clássico Dona Benta fez parte de minha infância e juventude. No entanto, minha mulher Marcia um dia chegou com o Panelinha da Rita Lobo. Obra fundamental. Ainda são dois volumes, mas, pelo que representa, um dia serão 89, como A Comédia Humana, de Balzac. Adoro exagerar! Rita nos leva a acreditar que podemos cozinhar como se fôssemos um chef.
No seu programa Cozinha Prática, ela é a figura etérea, que desmistifica e faz tudo risonhamente, distante da imagem tirânica de chefs que assombram novatos em séries de tevê. Como desejaríamos ter o equipamento dela, sua docilidade e a capacidade de nos convencer que somos capazes. Tente, você é capaz, ela nos diz subliminarmente, e ficamos envergonhados de desmenti-la. Ela nasceu possuída por um espírito benigno e nos absolve de nossa incompetência com panelas, anulando a abissal diferença entre nós e eles, os ungidos, os que sabem. Traz receitas imemoriais de mães e avós, manipula tudo como coisa corriqueira.
O que para nós se assemelha uma equação da teoria da relatividade para ela é uma continha de 2 + 2, elementar. Ousamos até acreditar que podemos. Entendemos a linguagem nada hermética da salsinha, alho-poró, cogumelos, noz-moscada, louro, cravo-da-índia, canela, kani kama, balsâmicos, salsão, amendoim picante, manjericão, tomilho, que se tornam coisas triviais, parte de nosso cotidiano. E os perfumes, o aroma das panelas, das fervuras? Tão bom folhear o Panelinha e encontrar receitas que não exigem trufas, patê de foie gras chaud, primeiros aspargos da primavera, perdizes, ouriços. Sim, curtimos A Festa de Babette, adoraríamos estar naquele jantar cinematográfico. Mas será que gostaríamos da “caille en sarcophage com sauce perigourdine”? Com que talher comeríamos?
Perdoem, sou simples, gosto de comer bem e gostoso e fico com Rita. Ela pratica uma verdadeira “autoajuda” culinária. Digo mais, ela tem nos auxiliado a atravessar a pandemia. Quando Marcia, minha mulher, apanha o Panelinha e vai para a cozinha, abandono o computador e acompanho. Sei que vai sair coisa. O que não fazia antes. Agora, fico ao lado, conversando e preparando um gim tônica para ela. Admiro e gosto de vê-la separando ingredientes, condimentos, picando, ralando, misturando, olho no livro, olho na panela, um gole no gim. Devia ter feito mais isso ao longo da vida, estar ao lado.
Ela prepara agora um gravlax de salmão. Não temos a parafernália da cozinha da Rita, mas mulheres são sábias, se ajeitam. O gravlax chega à mesa, perfeito, perfumado e descubro que é mais fácil escrever um romance de 400 páginas do que transformar receitas em realidade. Quantos outros maridos devem estar mudando o comportamento?