A Academia Brasileira de Letras, pela decisão soberana dos seus integrantes, recebe hoje Merval Pereira. Acolhe o jornalista, o escritor, o publicista.
O jornalista é hoje, mais do que nunca, se me permitir o idioma midiático, o escritor em tempo real.
O escritor nele, surgido nos dias matinais do narrador ficcionista, foi tomado pela voracidade do tempo do jornal. Ficou, não se sabe até quando, aquela saudade latente da literatura. A prosa transparente e equilibrada, mesmo hoje, não consegue esconder esse incontido objeto de desejo.
Já o publicista é antes o jornalista que se acompanha visceralmente de ideias, e leva adiante uma linhagem muito grata a esta Casa de Machado de Assis, e que remonta a João Francisco Lisboa, fundador do Jornal de Timon, patrono da cadeira 18, e depositário autorizado da consciência crítica da época. Torna-se fácil identificar no publicista o traço literário individualizador. O publicista nada tem a ver com o publicitário, esse extrovertido personagem dos nossos dias.
O jornalista é aquele que se debruça cotidianamente, infatigavelmente, sobre a notícia da hora, limitado pelo instável serviço de meteorologia da vida política. Não é esporte para ser praticado por amadores, por melhores que sejam as condições físicas do suposto atleta. A sua condição de escritor em regime de urgência aumenta ainda mais os seus desafios. Esse trabalho é uma atividade arriscada, e não raro, temerária. O seu horizonte corta a linha movediça do efêmero. A aposta maior consiste em contribuir com algo mais, que o habilite a transpor a fugacidade da manchete, a revitalizar a permanência do instante. Tudo com a necessária rapidez, mas sem perder de vista o olhar da história. Nunca a escravização à ocorrência, porém o fato e o horizonte do fato. Ou seja, o feito do fato.
A corrida de obstáculos da democracia de massas é produtora de ruídos e armadilhas imprevisíveis. Mas a imprensa, falada, escrita e televisionada tem resistido a essas perturbações incessantes. Continua sendo a tribuna, insubmissa, enérgica, demarcada hoje nos tempos nublados da derradeira modernidade, que de há muito prefiro chamar de baixa modernidade. Quem tiver alguma dúvida, leia ou escute a palavra elucidativa de Merval Pereira.
Ela e ele são protagonistas veementes dessa narrativa democrática, justamente agora, quando a indiferença e a agonia começam a anunciar a pós-democracia. A imprensa independente tem conseguido barrar a corrida frenética do "hiperpresidencialismo", do parlamentarismo desidratado, e dos aparelhos ideológicos de Estado. A tripartição dos poderes, que foi um dia o sonho republicano, não se encontra menos abalada.
Merval Pereira pratica o jornalismo de qualidade. Atravessa a fronteira, ainda persistente, entre a sociedade da informação e a sociedade do conhecimento, reconhecendo ser fundamental evitar que se choque a expansão virtual da mídia eletrônica com o que fora sua base virtuosa. Esse jornalismo nunca deixou de instaurar o saber propedêutico dos homens, das coisas, do viver do mundo. E Merval Pereira não se cansa de predicar pela relevância da informação, pelo "papel educativo", pela "função social" da imprensa. E também não deixa de rejubilar-se diante de ações, como é o caso do combate à corrupção, onde "a sociedade e a imprensa? são palavras suas? estiveram muito próximas uma da outra". Muito menos transige com o esfacelamento dos partidos políticos.
Merval Pereira se preparou pacientemente, aqui e no exterior, para sua opção profissional. Trabalhou em diferentes órgãos da imprensa, e escolheu O Globo como a sua morada preferida. Aí escalou todos os degraus, até chegar e se dedicar ao jornalismo de opinião.
Descende de uma linhagem de político e de educadora. Porque já houve época, neste país tão exilado de si mesmo, na qual educadores e políticos caminhavam lado a lado.
O papel da imprensa, agora só comparável ao período que antecipou a abertura democrática e a campanha que possibilitou a destituição de um governo eleito, vem sendo vigorosamente exemplar. E os combatentes desse bom combate ético têm nomes bem conhecidos: o próprio Merval Pereira, Jânio de Freitas, Elio Gaspari, Miriam Leitão, Boris Casoy, Villas-Boas Correia, Clóvis Rossi, Eliane Cantanhêde, Fernando de Barros e Silva, Otávio Frias Filho, para citar alguns nomes mais regulares. Eles sabem informar e analisar criteriosamente, com o saber agudo e ágil do imprevisível, e levar a efeito o cuidadoso e isento acompanhamento moral dos passos em falso da política doméstica, a propósito do que a palavra antecipada do Professor Francisco de Oliveira sobre a "irrelevância da política", insiste em ressoar como verdade incômoda.
O publicista, nascido do direito de cidade, desde a polis grega a civitas romana, é o servidor devotado da republica.
Quando tudo se confunde, quando os homens e as coisas vão perdendo a singularidade, em meio ao nevoeiro que encobre a cena pública baixo moderna, o publicista se destaca como o vigilante incansável do cotidiano democrático e dos bons costumes éticos, na mesma hora em que a moral privada, ou privatizada, parece substituir a ética pública.
Aliás, a cada dia, somos perigosamente tolerantes com a ausência de delimitação de fronteiras entre o público e o privado.
São subprodutos da ciclotimia do poder, que vai desde a anorexia intelectual generalizada até o neopopulismo expansionista, na verdade o paleopopulismo, orientados e conduzidos pela propaganda enganosa. Os produtos oferecidos nas prateleiras eleitorais estão, em geral, falsificados. E porque falsificados, falsificam. É quando imaginamos oportuno recorrer à competência de algum especialista em teoria do caos. Porque a democracia brasileira vem operando no vermelho. Até quando? Não se sabe. Ela tem fôlego de gato.
O mais recente livro de Merval Pereira, O Lulismo no poder, corresponde à radiografia reveladora, ao retrato sem retoque, ao rosto sem maquiagem, do teatro político brasileiro nos últimos períodos. Perpassa por suas páginas o fio da navalha ético, em franco dissídio com a amnésia moral que parece institucionalizar-se. Ele analisa, avalia, pesa cuidadosamente. Sem ceder à crise de nervos, como nos esclarecera metaforicamente o timoneiro espanhol Pedro Almodóvar. Tudo serenamente, criteriosamente.
No que a coragem moral se distingue radicalmente da bravata, uma vez que a primeira é substantiva, enquanto a segunda é tão só adjetiva. Daí a alta credibilidade que o rodeia: o reconhecimento da enérgica tomada de posição toda vez que desponta qualquer sinal de degradação dos valores.
Democracia, mais do que um conceito, é o caminho. Por isso devemos percorrê-lo com severa honradez. Sei que o vocábulo honradez é velho; mas estamos falando de velhos hábitos, que acreditamos devam persistir.
Dizem que a democracia traz consigo, desde cedo, desde a academia grega, graves defeitos de fabricação, sobretudo na hora de falar a verdade. Isso, contudo, não nos autoriza a ampliar a lista de inverdades. Quando a democracia se mostra infensa aos questionamentos, as taxas de racionalidade se reduzem substancialmente.
Merval Pereira afirma que, quando se tem opinião "não há temas tabus".
A morte da opinião, o controle do repertório temático, camuflado ou explícito, conduzirá inevitavelmente à parada cardíaca da democracia representativa. A própria ideia de representação vai sendo acometida pela falência múltipla dos seus órgãos. Apagam-se as diferenças, e promove-se a coalizão das colisões, em meio ao carnaval das impunidades. No lugar de uma sólida democracia representativa, o que se percebe é o baixíssimo nível da representatividade, a produção viciada dos diferentes poderes, apontando para a decisão dos patrocinadores, sejam eles laicos ou religiosos.
A corrupção na democracia e, o que é mais grave, a corrupção da própria democracia, estimula distúrbios e transtornos de consequências imprevisíveis.
Não é justo deixar de garantir a justiça redistributiva, legal e legítima; instaurando instâncias de responsabilidade que passarão normalmente pelo crivo dos meios de comunicação. A guerra ao jornalismo é uma guerra inglória, porque a opinião pública independente participa do mesmo compromisso com a verdade. De nada adiantará ocultar e dissimular, vigiar e espionar. É inadiável dialogar, compreender e encaminhar, em regime realmente aberto.
Constantemente nos deparamos com a máquina insana de desmantelamento da democracia. Mas ela só se desmantela quando, insisto, a representação é ilícita, e a representatividade, ilegítima.
Na outra margem do rio, aguarda a convocação da consciência emancipatória, necessariamente dialógica e múltipla, em condições de sustentar o avanço histórico. Como consequência primeira devemos pôr no lugar da assembleia de locutores desconectados, o pódio de interlocutores qualificados. A velha contenda maniqueísta entre liberdade e igualdade, que já havia excluído a fraternidade, merecerá o tratamento novo, sob os auspícios da negociação equânime da cidadania verdadeira. Aí se impõe, como item prioritário, evitar misturar negociação e negócio. Porque é comum confundir-se os dois níveis. A negociação é um instrumento hábil da democracia, uma via autorizada para a obtenção de consensos livres. Já o negócio tende a resvalar, com licença da palavra, em negociata.
A organização partidária vem sendo naturalizada, em vez de historicizada. Vai se tornando natural o uso abusivo do aparelho administrativo público, das licitações fraudadas, do lobismo desfigurado, dos discutíveis, até hoje jamais discutidos, dízimos partidários. A transparência se assemelha àquelas moedas que foram retiradas de circulação. Basta tentar decifrar a gestão, indigesta, dos fundos de pensão públicos e privados.
Em nossa pré-história colonial houve uma aparição estranha, conhecida como os "bolseiros do Rei", que parece ressurgir. A ação cultural como distribuição de brindes, e a bolsa família sem monitoramento e sem avaliação, vão nesse rumo. Não está de todo descartada a hipótese de uma sociedade saudavelmente de trabalhadores vir a ser, em grande parte, reduzida a uma sociedade de bolsistas. Falo apenas dos bolsistas ociosos, evidentemente.
A aceleração inóspita do Estado provedor traz, dentro de si, as ameaças do Estado autoritário, sem os benefícios do Estado previdência. Enquanto isso o país se apresenta como forte candidato à medalha de ouro na olimpíada internacional da sobrecarga tributária.
O pleito sobre a liberdade de expressão, bem ostensivo nas propostas de regulamentação dos veículos de comunicação, conforme o seu andamento, provavelmente nos dirá a quanto andamos. É possível notar, em vários campos da atividade societária, fortes taxas, diretas ou indiretas, de violência. A ponto de se tornar impossível saber quem detém o monopólio da violência. Muitas vezes sob a forma de defesa da pátria. A pátria, convenhamos, sempre alvo de patriotadas, ou patriotices, inócuas.
O tão louvável sufrágio universal ? marca registrada do republicanismo? tem perdido força no expediente retórico de mercadores inescrupulosos e no vazio deixado pela insuficiência educacional. Equivocam-se os que concluem que a economia dispõe, em suas contas bancárias, de todas as respostas para nossos problemas sociais. Observe-se que as pautas do aumento salarial do servidor público, em qualquer escalão, sem dúvida inadiável, ignoram a qualidade e a lisura do desempenho. E a esdrúxula reforma eleitoral em curso, a uma só vez retardatária e apressada, prefere fazer vista grossa. Daí a objeção que vem provocando na imprensa.
Merval Pereira sabe, ou aprendeu com Gabriel García Marquez, por ele citado, quando "a realidade beira a ficção". De minha parte, como profissional da área, e prestando atenção à contracena política, ousaria acrescentar: às vezes ultrapassa a ficção.
O jornalismo não deixou de ser uma pedagogia pública, e a questão da qualidade se encontra no cerne do seu projeto. O novo acadêmico valoriza, porque tem consciência do seu alcance social, tudo o que diz respeito à cultura e à educação. A degenerescência do espaço público político decorre muito da fragilização do espaço público cultural.
A própria cisão dos dois lugares já foi consequência do fosso estabelecido.
A correlação entre sociedade moderna e tempo livre abriu possibilidades e gerou desafios existenciais. A modernidade performática se expandiu incontrolavelmente, e o saldo desse empreendimento continua insatisfatório. Como preencher o tempo livre? A cultura nos oferece um leque variado de opções, para além das soluções salvacionistas, emergenciais e transitórias.
Como a Casa de Machado de Assis é também casa do livro e da leitura, vale destacar, até segunda ordem, que a leitura é uma dimensão constitutiva da experiência humana.
Não devemos subestimar a sua complexidade. A leitura pode ser interessada ou instrumental, prazerosa ou simplesmente vital ? ler para viver. Ler não apenas para ter ou para fazer, mas para ser. Longe de uma estratégia pedagógica fechadamente funcionalista, caudatária de uma estreita política de resultados. Importa assim proteger e desdobrar a qualidade da leitura. O que implica reescolarizar a leitura e até reescolarizar a própria escola. A escola nunca é a estação de chegada, porém o ponto de partida. E neste momento deve reprogramar o leitor inerte ou refém, aquele que se entrega ao consumismo passivo. Não basta quantificar a leitura; é urgente qualificá-la. Os gestores culturais de plantão se esforçam em esquecer esse dever de casa, e se dedicam a alardear os índices quantitativos. O silêncio é amplo, geral e irrestrito quanto aos indicadores qualitativos.
Em vez disso, esses gestores anônimos inventam a roda a cada novo dia, e põem em circulação bravatas midiáticas, sejam com relação ao preço unitário do livro ou à normatividade dos direitos autorais, sem a audiência prévia e larga dos diferentes atores envolvidos nessa cenografia sensível. O que é válido para outras emblemáticas áreas culturais, como o teatro, o cinema, a televisão, o rádio, o circo, as festas populares, e todo o seu cortejo lúdico. Merval Pereira conhece por dentro essa trama delicada e fascinante. Temos muito que aprender com ele. Com este leitor compulsivo desde os arredores da adolescência.
Com a despolitização da esfera pública e o depauperamento do espaço cultural, crescem o vazio e a indiferença, apontando para o que já chamei de baixa modernidade. O esvaziamento cultural do espaço público, na sua versão majoritária e menos sigilosa, mal resiste aos abalos sísmicos que o cercam, e repercute diretamente na queda qualitativa da democracia.
A cultura é plural, sim. Mas sem permitir que o pluralismo se desvirtue na versão demagógica do politicamente correto. Convém resistir ao domínio do capitalismo tardio sobre o inconsciente coletivo, uma vez que o capital simbólico deve se manter imune às infiltrações indevidas do capital financeiro. O empobrecimento do capital simbólico, o propalado desencantamento do mundo, deságua na representação servil ou descalibrada. Cabe educar e reeducar para libertá-lo da fúria burocrática, da blindagem mercantilista, da opção instrumental, de tantas outras patologias que o século XX não conseguiu curar.
A educação sem qualidade, tão presente nas estatísticas oficiais e oficiosas, no lugar de promover a inclusão social? ferida aberta?, realimenta a exclusão, especialmente em tempos globalizados, quando a competitividade adquire contornos mais alarmantes. Logo, a inclusão desqualificada é sinônimo de exclusão.
Em recente artigo sobre "a qualidade em xeque", Merval Pereira, acompanhado de interlocutores qualificados, transmitiu, com um realismo incômodo porém oportuno: "não há nada no panorama educacional brasileiro que justifique razão para o otimismo".
Pelo visto, os sinais trocados da mobilização social não foram satisfatoriamente corrigidos, pesando seriamente sobre a qualidade da própria vida democrática.
Além do mais, surgem no ar algumas irrupções menos aguardadas: a radioatividade do saber e do parecer, a revitalização da espionagem, o sigilo desvendado ou vazado, a sua propagação vertiginosa, para intranquilidade dos governos e das corporações. A coabitação entre o virtual e o virtuoso, o formato e a forma, o discurso e o desempenho, não conseguiram ainda estabelecer complementaridades criativas, no interior das quais venham a ter lugar as recíprocas reoxigenações.
Não se pode desconhecer, na sociedade dos nossos dias, os impulsos não raro insólitos, das redes sociais. Nada disso tem passado desapercebido às antenas parabólicas do jornalista multimidiático Merval Pereira.
Seus olhos abertos para o instante não significam investir no espontaneísmo predatório, nem se entregar à estratégia orgiástica do entretenimento. O homem moderno reconhece a necessidade compensatória do divertimento. Mas todo cuidado é pouco para dosar o exagero do presentismo, a mais-valia da urgência e o delírio da velocidade.
O império romano declinou com a mímica da representação, patrocinada pelo pão e o circo. Essa lição Merval Pereira sabe de cor e salteado, e ministra diariamente na sua idônea pauta jornalística.
O livro de Merval Pereira traz a valorização do melhor universalismo, aquele que procura afastar-se da sua ancestralidade puramente idealista e abstratizante. Parte da constatação implícita de que foi perdendo vigor a estrutura imunológica de que dispunham o Estado e a nação.
Não se trata simplesmente de recusar o paradigma globalizador, mas de substituir a ideia de paradigma, troféu de guerra da hegemonia das ciências sociais, por um conjunto de referências críticas plausíveis, por um elenco de instrumentos argumentativos distantes da ditadura epistemológica. Menos ainda de repelir a globalização com as ferramentas da própria globalização. Trata-se também de desprovincianizar a nação, absorvendo a emergência do espaço público transnacional. Sem qualquer concessão ideológica, o que não implica que sejamos liberados para aceitar resignadamente o vaticínio de que perdemos a nação sem ganhar o mundo. Convém se proteger, é claro, contra as sentenças daquele universalismo, filho dileto da autossuficiência eurocêntrica, inabilitado para a partilha e o reconhecimento do outro. Não tem faltado a Merval Pereira a compreensão sutil do xadrez internacional, da relativa despotencialização das potências, ou da eclosão internética, como comprova a sua interlocução com pensadores do porte de Jürgen Habermas, Alain Tourraine ou Manuel Castells. Já dialogara com Max Weber e Norberto Bobbio.
O mais recente livro de Merval Pereira chega a ser um programa de governo. E quando falo de programa de governo nunca tenho em mente a sequência de iniciativas desgarradas, porém o conjunto sistemático e coerente, socialmente plantado. O que assume papel relevante especialmente em geografia onde se multiplicam os governos sem programa.
Ao cair o nível qualitativo da educação, ou do seu correlato, a democracia de qualidade, ou ainda do vigor da representatividade política, sobe o número de eleitores inertes, terreno propício para a prosperidade da propaganda enganosa, da marquetagem desenfreada. Em meio a essa subversão cênica entra no palco o previsível ator, embora superestimado pelo caixa dois; um prestidigitador até aqui bem sucedido. É o marqueteiro, indecifrado herói do colapso político.
Já é hora de pensar com e para além da política. A nossa dieta reflexiva tem sido extremamente ascética. É inadiável retirar a política do seu gueto eleitoreiro. E esta constitui uma tarefa de todos nós, jornalistas ou simples leitores. Em qualquer hipótese, desde que sejam cidadãos, no exercício emancipado da cidadania. O cidadão é o homem que fez, acidentada e demoradamente, o trânsito da consciência solitária para a existência solidária. Por todos os lados, ganha corpo e alma, a exigência de democratizar a democracia. Começando por isolar as zonas de sombra que se projetam sobre a luminosidade do que seria a democracia tropical. Merval Pereira jamais vacila na sua denúncia tranquila.
Com o alargamento digital do horizonte individual, outros parâmetros se impõem, intensificando os abalos e as turbulências do mundo da vida. As promessas "divinas da esperança" foram desacreditando-se. E desacreditaram a imaginação. A tecnoburocracia deletou o encanto do mundo e, sem matizar, propalou o fim da utopia. Preferiu desconhecer que toda construção que se quer viável necessita recorrer a doses razoáveis do impulso utópico.
Muitos consideram essa aspiração como ambição ilusória, completamente desdatada. Uns pouco se inclinam em confiar na esperança concreta e, a partir dela, e das batidas cardíacas da história, reinventar a democracia, sob o signo do risco e a inteligência serena das ameaças crescentes. Advindas sobretudo, não da filosofia, das artes, da literatura, porém dos caminhos frequentemente tortuosos e peremptórios da tecnologia performática. Quem viver verá.
A nação adiada espera, ansiosamente, concretizar a previsão generosa de Stefan Zweig, aquele que em dias distantes sonhou com o "país do futuro".
A história vem privilegiando situações de fronteira, e a literatura criando outras territorialidades. Merval Pereira se fez beneficiário dessa localização, ou dessa instabilidade estável. É um dos últimos passageiros da galáxia de Gutenberg, e dos primeiros a ter entrada franca no cibermundo. É um operário da construção do amanhã.
Não posso concluir sem destacar um traço marcante de sua personalidade, hoje tão escasso nestes nossos dias de baixa modernidade. É claro que estou salientando a civilidade, essa força motriz da convivência. Do viver com, fraterno e íntegro.
Procurei, nesta exposição, seguir o roteiro temático oferecido pela obra de Merval Pereira. Se não consegui, não foi por culpa dele, porém somente minha.
Esta Casa sempre se constituiu de jornalistas referenciais: Austregésilo de Athayde, Roberto Marinho, Odylo Costa Filho, José Cândido de Carvalho, Antônio Callado, Carlos Castello Branco, para exemplificar com alguns nomes emblemáticos, que partiram deixando muitas saudades.
Ela, a Casa de Machado de Assis, agora é sua Casa também, Acadêmico Merval Pereira."
23/9/2011