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Holocausto, negacionismo e direitos humanos

 

O Holocausto é o crime dos crimes dos direitos humanos porque é uma deliberada e intencional denegação da pluralidade da condição humana. Era um crime sem nome até ser tipificado pelo jurista Raphael Lemkin, a quem se deve a Convenção Internacional para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, de 1948, promulgada em nosso país em 1952.

Lemkin cunhou o termo combinando grego e latim. Genos vem do grego (tribo, raça) e cidio do latim, do verbo latino que designa esmagar, derrubar, matar, por aproximação analógica com homicídio.

A Convenção tipificou, no art. 2.º, o genocídio como atos criminosos perpetrados com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.

O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, de 1998, tipifica os crimes de maior grandeza que afetam a comunidade internacional. Incorpora no elenco o crime de genocídio nos termos da Convenção de 1948, diferenciando-o dos crimes contra a humanidade, porque adiciona à atrocidade objetiva dos atos perpetrados o dolo da intenção de praticá-los.

O negacionismo contesta a verdade factual de um genocídio cometido. É o caso do persistente não reconhecimento pela Turquia do genocídio armênio, do qual foi vítima 1,5 milhão de pessoas, entre 1915 e 1923. É, também, o caso dos propósitos do “revisionismo histórico” denegador do Holocausto judaico, um dos instrumentos da propaganda antissemita contemporânea, voltada para um ideológico resgate do regime nazista que o executou.

Estas duas grandes vertentes do negacionismo foram recentemente avaliadas na USP. Em 24 de maio, na sala do Conselho Universitário, no lançamento do livro 100 anos do genocídio armênio, negacionismo, silêncio e direitos humanos, num evento que muito deve à professora Maria Luiza Tucci Carneiro. E na Faculdade de Direito, em 2 de abril, em seminário sobre Genocídio. História, Justiça e Memória, organizado pelo professor Marcos Zilli.

No contexto do negacionismo, recordo o item 15 do acórdão de 17 de setembro de 2003 do Supremo Tribunal Federal (STF), do qual foi relator o ministro Maurício Corrêa, que decidiu o caso Ellwanger – um propagador do antissemitismo e da sua prática como crime de racismo, um defensor do nazismo e um arauto em nosso país do negacionismo revisionista: “Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendem justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável”.

O negacionismo contrapõe-se à vis directiva da obrigação de “respeitar e fazer respeitar” as normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos ao escamotear pelo não reconhecimento a gravidade do genocídio.

A verdade factual do genocídio armênio está amplamente comprovada. Em 1915, declaração conjunta de França, Grã-Bretanha e Rússia registrou sua ocorrência. Livro do embaixador americano na Turquia Henry Morgenthau, publicado no calor da hora, em 1918, é um depoimento esclarecedor do que estava acontecendo e de suas inconclusivas tentativas diplomáticas de conter a tragédia.

O Holocausto judeu é uma indiscutível verdade factual. Não é uma questão de opinião que a liberdade de expressão protege na modalidade de um pseudo “revisionismo histórico”. Afirmou a Corte Constitucional alemã no caso Auschwitz: “Informação incorreta não é interesse merecedor de proteção” e “não está coberta pela proteção da liberdade de opinião”. A verdade factual da natureza própria do crime de genocídio – a intenção, a dissimulação, a crueldade, a quantidade de vítimas – foi amplamente discutida e reconhecida no STF em 1967, no caso Stangl, do qual foi relator o ministro Victor Nunes Leal. Trata-se do leading case da jurisprudência brasileira, que deferiu a extradição de Franz Stangl, oficial da SS que chefiou campos de concentração e tinha se homiziado no Brasil.

O reconhecimento é a asserção de uma verdade factual que não pode ser historicamente modificada, como ensina Hannah Arendt na sua análise da relação entre verdade e política. A denegação oficial pela Turquia em relação ao genocídio armênio ou o empenho em ocultá-lo, em relação ao Holocausto judaico, almejado pelo “revisionismo histórico” dos adeptos do nazismo, são embustes voltados para engendrar “poços de esquecimento”.

O reconhecimento é categoria do Direito Internacional. Tem várias acepções próprias, mas convergentes, ligadas aos contextos. Entre eles, aceitar, admitir, afirmar, estabelecer, não contestar, respeitar. A demanda de reconhecimento de um genocídio busca não apenas a transmissão do conhecimento das especificidades que o caracterizaram, mas o seu pleno reconhecimento jurídico. Esse reconhecimento se insere no âmbito do direito à verdade e à memória, cuja validade o Direito Internacional dos Direitos Humanos vem afirmando crescentemente.

O direito à verdade e à memória tem dupla dimensão. A primeira está vinculada ao direito de luto das vítimas e dos seus descendentes. Representa o reconhecimento jurídico da voz dos atingidos e dos seus familiares. É uma modalidade de fazer-lhes justiça. A segunda tem a dimensão da titularidade de uma coletividade, ou seja, do reconhecimento da relevância do saber público sobre a verdade do que se passou, que é mais abrangente do que o direito à informação. É o direito à memória dos fatos que, com o genocídio, vitimou pela dolosa ação do mal ativo dos governantes, de maneira atroz, a identidade de uma coletividade, cujos membros padeceram uma pena sem culpa não pelo que fizeram, mas simplesmente por que integravam, nas palavras da Convenção de 1948, “um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. 

O Estadão, 16/06/2019