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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Hélio Lobo

RESPOSTA DO SR. HÉLIO LOBO

SENHOR Alberto de Faria,

Designando-me para vos dar as boas-vindas, acentuou a Academia o gosto dos contrastes, em que se compraz. Aos vossos títulos, opõe minha desvalia. Ainda bem que vossa alocução assegura o realce desta festa; e cousa que vos diga, por desluzida que pareça, e há de ser, não destoará do tom geral da solenidade.

Faz também praça esta companhia da indulgência, que se serve por vezes de mostrar. É dos doutos conciliar o rigor na bondade. Aqui isso se dobra em graça acolhedora porque, sabidos em remoques e paixões, tudo lhes vem a ser fonte de sabedoria.

Desnecessário era, portanto, que para penetrardes estes tetos, vos acudisse explicar o caso do tolo é o outro. Não são raros aqui os que terão zombado, antes, do que depois só mereceu louvor. É mesmo quase dos estilos andarem de sociedade, em noites como esta, a culpa e o arrependimento. Não formamos asilo de beatitude, ao contrário são também nossas as fervenças da carne e do espírito, a que aludia o clássico. De Voltaire não é, aliás, a confissão de que na sua Academia, nosso amado modelo, tinham entrada até os homens de letras? Não obstante foi acadêmico, o maior do seu tempo; a sua ironia cortava fundo: “Adeus, meu caro amigo, escreveu ao abade d’Olivet, posto que sejais acadêmico, quero-vos bem e vos aprecio de todo o coração: sois digno de o não ser.” Não é de todo vã lembrança, quando falo ao sucessor de quem se foi prematuramente, desavindo também conosco.

O de que, entretanto, se não dispensa a Academia é dos títulos à sua investidura. Tem o caminho livre quem dela desdenhou, contanto que, por nomeada e obras, esteja ao nível do seu padrão. Remoques, afinal, deparam seu remédio; mas o resto?... Preza-se ela de ser, e o será cada vez mais, afora quem bem sabeis, o espelho veraz da cultura nacional, pelo menos nalguns de seus mais altos cimos, – poetas, prosadores, diplomatas, jornalistas, advogados, historiadores, engenheiros, soldados, médicos, sacerdotes, oradores.

Direis que são todos letrados, e estou que sim, mas não terão tido acesso só pelas letras senão também, e preponderantemente, pelo que noutros campos realizaram. Se é exato, por exemplo, que, dentre os vivos culminantes, não quis a Academia honrar em Aberto de Oliveira senão o primoroso artista do verso, a maior glória vivente de nossa poesia, não se galardoou menos em Osvaldo Cruz, dentre os mortos exclusos, o higienista e o homem incomparável, que foi em ação o que sabemos e nos deu em vida o que tanto admiramos.

Bem o prova a poltrona que acabais de conquistar. Foi seu primeiro ocupante um historiador assinalado, ao mesmo tempo fiel intérprete do Brasil lá fora. No patrono, por sua vez, outros não eram a feição e os trabalhos, pois deu também realce à representação exterior do país, dedicado igualmente ao estudo do nosso passado.

Vós vos referistes, com justeza, em Francisco Adolfo Varnhagen e Manuel de Oliveira Lima, à índole combativa, para não dizer acaso bravia. Trabalhadores infatigáveis, não procuraram o lado cômodo das cousas, preferindo-lhe, por vezes, a atitude beligerante. Mas não é a vida mero espelho do que nos vai por dentro? Cada um conforme seu fígado, diziam os físicos de antanho, quando melhor acertaríamos, hoje, afirmando que a cada qual seus devaneios. O encanto da história consiste em que, sendo a mesma, é sempre outra; e o dos homens não está menos no mosaico de seus humores e predileções. Pois aqueles, como escreveu Vieira, “amam as cousas não como são, senão como as imaginam e o que se imagina e não é, não o há no mundo”.

Em Oliveira Lima, cujo perfil tão cabalmente acabais de traçar, foi a existência um cuidado perene de nossos homens e de nossas cousas. Bem provastes que nos servia à sua feição, batalhadora no presente, complacente nos dias idos, susceptível e vário, se quiserem, mas sempre brasileiro. Foi nesse aspecto que me tocou versá-lo de perto, quando, todo entregue à liberdade de escrever e argumentar, fundou em Washington a biblioteca de seu nome. Quando outros serviços não tivesse à terra natal, e foram largos, esse só bastaria para lhe consagrar o nome, – livros, documentos, cousas d’arte recolhidos anos após anos na sua longa carreira, centro de irradiação que dirá sempre, com autoridade, não só da cultura e da civilização brasileira, como deste nosso mundo latino-americano. Homem acima de tudo continental, deu à sua vida e à sua obra, ali, o significado de uma aproximação espiritual e humana, que as gerações vindouras não podem deixar fenecer.

O zelo do Brasil, na sua tradição histórica, nos seus problemas maiores, inspirou sempre aos vossos antecessores. Mais ainda, foi invariável em ambos, até o fim, o fruto em livros e estudos, quantos e quão proveitosos.

Não é por coincidência, tão senhora aliás de alguns de nossos dias, que com eles vos achais. Aqui é pleno vosso direito. Dizendo do elogio de Oliveira Lima sobre Varnhagen, julgastes, não sem razão, que se estudou ele a si próprio. Outro paralelo existe, que porventura já notastes, o de certas afinidades espirituais que vos ligam ao vosso antecessor: inclinação política batalhadora, arremesso no ataque, certo desabrimento na defesa, que as gazetas, de preferência ao livro, testemunharam. Eu acrescentaria, se me permitísseis, com o gosto pela carta como traço de amizade e desabafo interior, aquilo de Rodrigues Lobo, na sua Corte na Aldeia: “Homem de boa criação e, além de bem entendido, notavelmente engraçado no que dizia e muito natural de uma murmuração, que ficasse entre o couro e a carne, sem dar ferida penetrante”. A diferença está em que, onde um deu livros sem conto, no curso de sua vida, o outro só sobretarde, quando os cabelos prateiam e pede o corpo mais repouso, se saiu com seu volume. Seria ainda de assinalar que, enquanto Oliveira Lima percorreu os quatro sóis, no exercício efetivo de uma carreira itinerante, vós por ela passastes apenas de vôo. Mas isto mesmo redundou, afinal, em maior glória para vosso nome, porque, embaixador em terras estranhas, dificilmente teríeis produzido o livro de polpa, que é vosso Mauá. Se perdeu a carreira com a renúncia, ganhou a Academia, que aqui vos tem.

Não se desluziria aquela, antes se acrescentaria em lustre e serviços, com um titular de vosso tomo. Tínheis efetivamente tudo para atingir logo seu degrau mais alto, – cultura, conhecimento do Brasil, trato dos homens, franqueza. Não esqueçamos esta, porque está nas vossas qualidades e já não é mais do mundo a trama de enredos e vacilações, que se chamou a diplomacia secreta. Nada que se oculta deixa de saber-se algum dia; e os compromissos menos nobres encontram invariavelmente seu tribunal. Tudo está no saber dizer, já salientou para seu tempo, com prosa que seria para hoje, Choiseul: “La véritable finesse est la vérité dite quelque fois avec force et toujours avec grâce.”

Andou por aí a vicejar a doutrina, de que variará a representação exterior, com as rotações da política interna, para lhe corresponder melhor às iniciativas e projeções. Se é verdade que, por vezes, alguns ministros políticos levaram a bom êxito, lá fora, negociações transcendentes, não é menos certo que, da carreira mesma, foram os resultados maiores e mais continuados. Só lembrando alguns cimos, a Paraná, Abrantes, Paranhos o Pai, opõe nossa tradição Penedo, Sousa Correia, Rio Branco o Filho. Se temperamento e cultura são dois equivalentes no meneio das cousas exteriores, vale mais o primeiro na falta de um deles, pois o tacto sem brilho não é maléfico, ao passo que a inteligência estouvada pode deitar muita cousa a perder. O que sucede é que, de sua natureza reservada, vive a carreira na disciplina; pouco do que constitui seu esforço total sai da reserva e vem a conhecimento público; e o sacrifício em silêncio, malgrado serviços cabais, forma, não raro, o drama íntimo, irrevogável e tremendo, como esse em que se finou nosso Domício da Gama, tão cedo apartado de nós, exemplar vivo de doçura, zelo também da profissão e amor do Brasil. O estancear por terras peregrinas, na representação oficial, traz ao espírito um equilíbrio de julgamento e um trato de cousas e gentes, muito de encarecer; mas vai acumulando suas horas crescentes de melancolia, à medida que os anos avançam e a Pátria, sempre perto no coração, se afasta cada vez mais, na escala do tempo.

Estudante, como Varnhagen e Oliveira Lima em Lisboa, ou aluno no Brasil do Colégio Queiroz, vossos pendores já eram tais que, laureado no segundo por méritos altos, vos foi então reconhecida, além da folga aos sábados, comum a todos os colegas, uma excepcional às quintas, “para assistir às sessões das câmaras”. Não direi quando isso ocorreu, porque entre nós não há idades, sendo a mesma em todos, a da confiança e do trabalho; mas não há indiscrição em lembrar que sucedeu na época em que, existente já o plano inclinado que vinha ter à República, se agitavam no parlamento imperial as grandes questões, que a precederam.

A vocação política inspirava tanto vossos primeiros passos, que vos tinha no seu seio, aos 15 anos, o Clube Republicano da Faculdade de Direito de São Paulo; e, entre os nomes sumos, que vos cercavam, já era vosso amigo esse Pedro Lessa, de quem tão bem falastes e cujo trespasse nos deixou em fechada tristeza. Redator, depois, do órgão do Clube, vossa pena carregou também a fundo pela abolição. O ardor cresceu com os anos, desatando em belos frutos; mas não levou à política militante, que era de esperar, antes dela se conservou alheio, para ficar bem à vontade no seu feitio. Era o “Rompe, corta, desfaz, abola e talha”, a que vos referistes mais tarde, e que não nos cairia mal, mesmo no ímpeto de outrora, desde que temos também nossa esquerda, e com ela nos vamos humanamente à imortalidade. Andorinhas viajeiras, as do meu molde se deleitam, quando lhes toca, como a mim agora, conversar a Academia, na observação do que por aqui vai. Nem sempre são harmonias nossas reuniões semanais; e quando nos falam no dicionário então para logo se vê negrejar, num repente, a tempestade. Quem disse, porém, que duraria? Anda em tudo o equilíbrio das cousas. É o dicionário o filho mimado, que cada qual quer emprumar a seu modo e nos traz em zelos, o que resultará certamente em obra digna desta nosso formosa linguagem.

Cousa ainda para acentuar, não vos colheu em suas malhas o jornalismo praticante. Grande tem sido a imprensa nos nossos destinos, grandes os nomes que a ilustram. De alguns editoriais sumariando épocas de tribulação ou dias pátrios, adveio, mais de uma vez, o clarão transfigurador. Tampouco se fez assim vosso renome. É que o papel foi outro, o de batalhar em combate singular, só contra todos, sem disciplina nem sujeição, onde e como vos parecesse, interesse próprio, serviço da cidade ou causa nacional. Se, como dizia a antiguidade e recordou o grande Rui “nem Hércules contra dois”, nas vossas pelejas o combate é de um contra muitos. Volúpia da acometida, ela está toda em vossa existência, sem mira de recompensas nem busca de posições, algumas das quais sabidamente ao alcance de vossas mãos. “É de meu temperamento ir logo ao encontro das dificuldades maiores”, escrevestes um dia. Noutro, exclamastes vos faltar “energia para ficar quieto”. A confissão, paradoxal na aparência, refletia, entretanto, um temperamento. Iniciada, ainda que para breve trecho, a profissão em que vos doutorastes, registrou a comarca de Campos absolvição total, nas vinte e quatro causas criminais que vos foram confiadas; industrial, depois, o mesmo sucesso coroou os vossos passos; e, por fim, advogado sem procuração, mas consciente do que vos pareceu o serviço do país, ficou-vos bem aquele dito de Du Paty, que com orgulho reclamastes, segundo o qual “l’ordre des citoyens est avant celui des avocats”. Seguro dessa rota, não destes jamais de mão a campanha começada, por grandes que fossem seus espinhos, crescida a vontade na ordem direta dos tropeços. Ou, como nos Lusíadas:

Não tornes por detrás; pois é fraqueza
Desistir-se da cousa começada.

Disse Gilka Machado da sua opulência triste, essa necessidade do viver material que é fonte da força criadora:

Miséria, minha íntima riqueza,
Neste viver lentíssimo e enfadonho,

Imortal estatuária da beleza,
Dos versos dolorosos que componho!

Por certo que os cabedais, que vosso engenho vos granjeou, concorreram para uma situação singular no nosso país, a do bacharel que, apenas formado, dispersou a biblioteca incipiente e, sendo uma das mais completas inclinações de advogado e jornalista, que nunca apareceram, deixou-se ficar à parte. Vós vos referistes um dia a alguns príncipes de nosso jornalismo, mas havia lugar para outro, não inferior. Lendo alguns de vossos a pedidos, tão numerosos quão vários os interesses que vos impusestes defender, folheando vossos memoriais de combate, vem-nos ao espírito o que teria sido tal pena, na direção de um desses respiradouros da opinião, que, a espaços, iluminam nosso caminho. A graça ali corre parelha com a leveza do estilo, o sarcasmo esfuzia no inopinado dos golpes, há uma gradação natural de efeitos que arma o desfecho, tudo movido por um espírito tenaz de lide que, não recusando discussão em nenhum terreno, é intratável na sua porfia.

Não há tempo para dizer de tudo, baste-nos lembrar que, de uma feita, a querela foi com vosso predecessor mesmo, a propósito de um caso diplomático notório, e ainda bem que, negando-lhe quase tudo, lhe reconhecestes talento e vontade de trabalhar. O conhecimento do homem corrigiu, depois, essa impressão de escaramuça, ligando os dois por uma grande estima. De outra, destes, a quem vos seria depois caro na família, e é entre nós dos maiores, sermão sobre a crise militar de Euclides da Cunha, quebrando o sabre diante do Ministro da Guerra do Império. Deslocado então nos meios literários, como vos confessastes, a propósito do “O Discurso de Afrânio”, isso não vos impediu, com espírito, de chamar a contas a Academia, aconselhando-a a que fosse sempre, e nunca deixasse de ser, sobretudo nas peças oratórias de iniciação, e de acordo com o conselho francês, “l’asile des parfaites convenances et de la politesse exquise”. “A Academia Brasileira, nos seus hábitos de imitar gestos e modos de sua veneranda progenitora, foi vosso aviso, bem poderia transplantar e cultivar com carinho a flor gaulesa por excelência, a mais fina e perfumada, a da boa sociedade.” Ainda bem que evoluímos, tanto que aqui vos temos.

De outra vez, mais que a diversão de um espírito travesso, brincando com coisas leves, foi o caso de uma campanha ruidosa. Contenda memorável pelos interesses que abarcava e os nomes que envolvia, ela constituiu, nos onze anos que levou a concluir-se, todo vosso orgulho. Haviam reboado como trovões as palavras da opugnação e da defesa, autorizados tais extremos pela repercussão do pleito, um dos maiores do nosso foro; e se diria mesmo nos ares o eco do ódio, “la colère d’habitude”, de que falastes, pois paixão geral, que acaso entrou, era natural em lide de tanto tomo.

A verdadeira campanha, a campanha nacional, vós reservastes, porém, para o fim, realizando-a não já entre homens e coisas vossas contemporâneas, mas revivendo uma grande e esquecida figura do passado.

Ao estudar a vida e obra de Irineu Evangelista de Sousa, foi articulado que vos apaixonastes a ponto de nos sairdes com um panegírico; como se fosse possível, de um lado, vos imaginar em tal empresa sem o entusiasmo que é vosso apanágio, e, de outro, supor que existência de tal porte pudesse acaso narrar-se sem o calor das grandes emoções humanas. Escrevendo de Mauá, a pena devia embeber-se fundo em todos seus triunfos e angústias, para os pesar até o âmago. A vossa realizou isso, porque levantou do papel um homem, já havia largos anos esquecido e que, entretanto, fora tudo, modelo de virtude ao mesmo tempo que gigante de realização até hoje não ultrapassado no Brasil. Vosso livro, além de tanta coisa a meditar, prova, ainda, que não vos minguaram os primores da bondade, sem os quais nada se creia no mundo. Não podemos admirar senão aquilo que temos no coração, ou segundo disse Cícero, no Diálogo da Amizade, e traduziu Duarte Rezende, “os bons amam aos bons e trazem para si atados por parentesco e natureza”.

Em Mauá vistes bem o caráter e a ação, aquele direito no seu rumo, esta obrando prodígios para época tão noviça. Não conheço, na trama esplêndida da vida, coisa mais bela do que a entrega dos bens à concordata, numa renúncia total para salvação do que lhe importava acima de tudo, a honra. Quando a justiça brasileira, a justiça platina, a justiça inglesa pareceram faltar-lhe, sobretudo a primeira, não se lhe esmoreceu o ânimo, e seguiu adiante. Não a houvera reconhecido, num pleito célebre, “o freio dos poderosos da terra, a protetora dos estrangeiros, a reputação dos monarcas”? Era de penúria, entretanto, a situação pessoal, pois dos cristais, da louça com brasões, das canastras com o linho de cama da família, dos oratórios em que rezava, de tudo se despojou voluntariamente, depois de 45 anos de assíduo labor, em benefício da liquidação, que queria levada ao último vintém. Foi, então, que apareceu, numa bandeja de prata, como depoimento mais expressivo, a lembrança do inglês amigo e bom, que lhe guiou a vocação, deixando-o, aos 25 anos, senhor da sua casa e de seus negócios: “A Lízia Ricardina de Souza oferece este pequeno mimo, o seu ausente porém amante padrinho, Ricardo Caruthers.” “Não quero outras armas senão as da moralidade e da razão”, dissera já às vésperas da queda, e o repetiu dramaticamente, quase num soluço: “Só quero ser o caixeiro da liquidação, entregar tudo sem reserva alguma... A família tem em todas as hipóteses o arrimo de meu filho Henrique, que é bom; para mim bastam-me nove palmos de terra”... E quando, reabilitado, se foi de novo a Londres, para recomeçar, quase setuagenário, a estrada iniciada, aos nove anos, atrás de um balcão, havia no seu passo, nas suas palavras, a serenidade de que só os corações de grande fibra são capazes. Para mim, o maior encanto do vosso livro está nestes lances, nos quais o homem se excedeu a si mesmo e encontrou na fortaleza da vida interior suas horas de resignação. Para os de seu tope era consolo dizer, com Catão Maior, que “nem me arrependo do tempo que vivi, porque vivi de modo que não cuido ser nascido debalde neste mundo”. 

O homem de ação, por sua vez, lançou tantas e tão variadas empresas, que, para lhe medir bem o vulto, melhor fora pensar no que, com sua morte, deixamos de ser. Era, entre nós, aquilo de Lesseps, descrito em Renan e tão justamente por vós lembrado, “um desses colaboradores da fortuna que parecem ter a confidência do que quer, num momento dado, o gênio da civilização”. Inaugurando-lhe, em Porto-Said, o monumento em sua memória, não achou o Visconde de Vogüé senão uma única palavra para defini-lo, a mesma que assenta ao vosso biografado: “Entrepreneur, réfléchissez au sens premier et à la beauté intérieure de ce mot...”

Mauá nos deu, realmente, quase tudo, o crédito bancário, a navegação no Amazonas, a indústria do ferro e da construção naval, o cabo submarino, as estradas de ferro, os diques flutuantes, o reboque a vapor no Rio Grande do Sul, os melhoramentos do Rio de Janeiro, onde o gás, a companhia dos bondes, o canal do Mangue lhe marcam indelevelmente as iniciativas. Era, entretanto, o tempo em que Bernardo Pereira de Vasconcelos, – e nada menos do que ele, – argumentava contra os trilhos, com o receio de que “no segundo dia de cada mês os trens parassem, por estarem esgotadas as cargas do interior”; e um estrangeiro, que nos olhou com simpatia, aqui dormindo seu sono de liberalismo, Rybeirolles, nos descrevia como a cidade canicular e de negros, onde a arquitetura não existia e tudo era pobre, “feia lavra de cidade no esplêndido invólucro de suas matas”, como a descreveu, dizendo dos começos do Pai, o homem primoroso e glória nossa, que foi Joaquim Nabuco.

Mauá, porém, não limitou ao Brasil o raio de sua ação, ampliou-a aos países vizinhos, num sonho de realização material só equivalente ao idealismo que o inspirava. A América do Sul, pelos trilhos e as águas, teria como propulsor o Brasil, com suas riquezas infinitas. Do reflexo dessa ação, num dos meios de mais direta influência, que a mim me coube conhecer e admirar, tive testemunho: o nome se lhe estampa no Uruguai em cais e estâncias; organização bancária, estaleiros, plantações de algodão, curtume, lavoura e moinhos de trigo, tudo lhe lembra ali os passos audazes; e, principalmente, vive a recordação do amigo estrangeiro, envolto, como nenhum, no remoinho dos acontecimentos capitais, durante largo período da vida nacional.

Documentos íntimos, que li e que conheceis como ninguém, retratam a sinceridade da sua obra, seu amor do país torturado, o ardente desejo de vê-lo caminhando altivo e pacífico, entre os melhores da terra. Tão fácil e, contudo, tão difícil: “Um país, escreveu, cuja felicidade invejariam muitas nações do mundo, de poder, com um só ano de colheita feliz, voltar ao regime da conversibilidade, depois de uma revolução, duas guerras externas e uma epidemia terrível.” Hoje, que, purificada no fogo de irmãos, a República Oriental se ergueu a modelo, a lembrança do brasileiro não mais se apaga. Homem de negócios, evidentemente ele o foi; mas homem de visão excepcional, acima de nenhum de seu tempo, pela subordinação dos interesses imediatos a certos princípios espirituais e humanos, pelos quais lutou até os dias extremos.

O vendaval, que envolveu ao seu instituto em Montevidéu, foi, segundo pensastes, o início da crise que, tomando corpo depois aqui, o deixou prostrado. “No desastre, nesse infortúnio nacional, escrevestes, não houve culpa sua; houve erros alheios.” E aqui é que me parece estar, um pouco, vosso engano. Adiantando-se muitos anos sobre o Brasil de então, Irineu Evangelista de Sousa foi um desses criadores geniais, como só os conheceram, na sua vastidão e complexidade, os Estados Unidos da América, – reis de estradas e capitães de indústrias, sem cujo descortino não seria a nação a grandeza que hoje é. Mas, ali, tudo facilitava a imensa obra de coesão e desenvolvimento, território menos ingrato, capitais estrangeiros afluindo, clima adequado às melhores raças européias, instrução pública iniciada com a abertura das estradas, e circunstância não menor, a compreensão anglo-saxônia do trabalho em comum, sem as rebeldias latinas e seu esforço capaz de largos vôos, mas interminante e errático. Éramos, também, cerca de cinqüenta anos mais novos na vida autônoma. De modo que o problema integral, como nos propunha Mauá, só poderia ter, como teve, por força do meio desarticulado, solução fracionária, caindo o colosso ao peso da própria obra.

A figura central de Pedro II, a constelação de nomes que o cercou, devem estudar-se à luz da realidade brasileira, sobretudo o primeiro, a quem não se fez, ainda, toda justiça, como pêndulo fiel entre nossas deficiências e exaltações, no teatro do país territorialmente imenso mas parco de gente, com os rios desnavegados, as vias de comunicações escassas, o comércio cochilando, as riquezas intactas, sem educação política pelo voto, nem instrução pública. A lição do segundo reinado é a do homem, que, pelo equilíbrio de suas faculdades e o conhecimento do meio, nos permitiu crescer na integridade territorial e política, já que o progresso geral, sacrificado, acima de tudo, pela escravidão, só a República podia trazer em suas fórmulas e sua época, ensinando com a escola, descentralizando com a federação, povoando com o braço estrangeiro, unido pelas vias de penetração. E gêmea da felicidade espiritual, irradiada dos centros em moldes sempre melhores, é a outra, da prosperidade econômica, que ao Brasil vai também caber: uma zona igual à da Europa, mas sem barreiras alfandegárias nem questões de raça, na qual circulem livremente, num mercado de milhões de almas, todos os produtos da terra e da manufatura nacionais.

Brasileiro como os melhores, bem sentistes que nos faltava, para a realização de tais destinos, a palavra de fé com que os revelar, em conjunto, à nossa terra. Vosso Mauá é o catecismo dessa era, cujo esplendor se anunciou no sonho de um cérebro solitário, há mais de meio século. Bem compreendemos vosso orgulho e convosco exultamos.