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Fio do Tempo

 

A História me fascina desde a infância. Era, antes de tudo, uma visão monumental, um grande afresco nas paredes do tempo, no qual grandes impérios emergiam do nada e para o nada se apressavam a passos largos.

Começava para mim no antigo Egito, com aquela obsessão de eternidade, escrita na rocha, para triunfar sobre a astúcia do tempo.  

A História, para mim, só podia ser universal: Livro aberto, vertiginoso e altissonante, escrito com sangue, transitando nas  artérias do tempo. Fluxo de guerras e invasões, templos em ruínas, fachadas e capitéis partidos, mundo de infame sinergia,  sucessão de belezas e de escombros. Uma sinfonia interminável de heróis paralelos e vidas ilustres.

Com o passar do tempo, a desilusão de domar a História trouxe a crítica feroz aos deterministas, que buscavam não apenas de ler o passado, mas também prever as dobras do presente, como cartomantes travestidas de ares científicos, pontuando sem temor a dialética do futuro.  

Os últimos filósofos da História, Spengler e Toynbee, tão diferentes entre si, conservam apenas o desenho de duas poéticas da história que definitivamente naufragaram. Toynbee possuía a sólida cultura que faltou a Spengler. O primeiro ousou menos porque sabia mais. O segundo ousou mais porque sabia menos. Sequestraram o tempo e mataram a História, na ilusão de capturá-la. 

Assim ocorre com a nossa História recente, as mudanças de rumos, os erros do passado e os de agora só poderão ser plenamente compreendidos num tempo de média e longa duração, sem frustrados ensaios de sequestro e paixão. 

Não podemos contar com uma narrativa sem autocrítica, vitimizada e parcial do Congresso. Não apostemos na teologia da História, própria da Lava Jato, tão autorreferente e messiânica, ao partir de um ano zero, como quem faz tábula rasa. Nem procuremos nos votos do STF a narrativa de um Judiciário sobreposto aos demais Poderes, com virtudes capazes de tirar sozinho o país do abismo.

Será preciso reconhecer que erramos todos, sem exceção, por ingenuidade ou cálculo, e que a responsabilidade da crise atual é toda nossa, porque não soubemos encontrar novos caminhos para os desafios do presente. Buscamos respostas extremadas e aumentamos a temperatura e a estridência. Somos sócios da crise, majoritários ou não, implicados nas malhas que criamos, ocupados no combate aos monstros nascidos de escolhas desoladas e intempestivas.    

Não estamos numa cruzada, nem é preciso cavar novas trincheiras. A partir de uma perspectiva intelectualmente honesta, não devemos apostar na luta do bem contra o mal, das mãos limpas contra as mãos sujas, das asas do anjo contra as impurezas do demônio. 

É preciso enfrentar com firmeza a barbárie e a violência do protofascismo em marcha, sem que a justiça se torne um ajuste de contas ideológico. O fio do tempo e da história deixará claro quem apostou na cultura da guerra e quem de fato não abandonou a cultura da paz e da justiça social.

O Globo, 02/05/2018