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O Grande Incêndio

 

Assistimos no começo do ano a um verdadeiro filme de terror nos presídios do Brasil setentrional. Vinte e cinco anos após o massacre do Carandiru, festejamos as bodas de sangue entre nossa desídia e o sistema prisional.

Cerimônia fúnebre, a céu aberto, num sórdido coliseu, com imagens on-line impensáveis, nas quais os detentos atuam, ao mesmo tempo, como leões e gladiadores de uma rixa autofágica. Eis o resultado de uma democracia de baixo impacto, em que mudam apenas o nome dos gladiadores – jovens negros e pobres – com o polegar dos internautas da ultradireita, voltado para baixo, contra a defesa dos direitos humanos, com milhares de “dislikes”, de não curtidas. 

As prisões dessa Roma tropical ainda não chegaram ao século XVIII, ao célebre livro Dos delitos e das penas, de Cesare Beccaria, que propõe uma proporção métrica muito clara entre crime e castigo. Ultrapassá-la seria incorrer na tirania.

A história do Brasil pode ser lida nos limites do cárcere, microcosmos que aclara as feridas de nossa formação em larga escala. O problema é antigo, assim como a mentalidade dos agentes públicos da era Carandiru-Alcaçuz, desde as declarações do “acidente pavoroso”, em cuja masmorra “não tem santo”, e que, por isso mesmo, seria preciso “fazer uma chacina por semana”. Belo conjunto de frases para discípulos retardatários da eugenia.

O desafio não se limita aos poderes executivos. Se, por um lado a lei antidrogas de 2006 ampliou drasticamente a superpopulação nas celas, por outro, a estrutura mínima da defensoria pública não atinge as extremidades do sistema. Se não fosse o trabalho dos defensores, aliás, a tempestade de janeiro não teria fim. As facções surgem da massa carcerária para resistir a um Estado cruel, que não cumpre seu dever constitucional, tratando os detentos como se apátridas fossem, sem nome e identidade, chamados pelo artigo em que se enquadram. Se houvesse dignidade nas masmorras, dificilmente as facções teriam alcançado tanto poder. Estado e facções andam separados: onde um se faz presente, o outro não aparece.

A Pastoral Carcerária exerce um papel decisivo, com seus quase cinco mil agentes, voltados para a promoção da paz e da justiça, trabalho de que dou testemunho nas visitas que fiz a algumas prisões. A ação da pastoral não se pauta pela conquista das almas. Seu compromisso fundamental reside na defesa dos direitos humanos, compromisso de solidariedade com o detento e sua família, trazendo de volta estilhaços de sonho num horizonte de futuro. Segundo o padre Valdir Silveira, a prisão não devia ser a primeira medida e defende uma espécie de nova lei áurea, com o fim da tortura.   

A solução dependerá de uma política séria de inclusão. Ou aprofundamos a democracia ou seguiremos para uma convulsão social sem precedentes, além das grades, abatendo nossa Roma, entretanto não teremos um Nero capaz de abrandar a culpa de um incêndio que não quisemos evitar.

O Globo, 01/02/2017