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Coronel sem Lobisomem

 

Com a morte de José Cândido de Carvalho em 1989, a promessa do romance Rei Baltazar parecia de todo perdida para seus leitores. Cheguei a ouvir de José Cândido alguns detalhes rarefeitos, na casa de nosso amigo Alberto Torres, na praia de Icaraí. Anunciada muitas vezes na imprensa, aludida em conversas, para cair quase no esquecimento desses últimos anos, quem poderia imaginar, passadas três décadas, que o manuscrito existia, e bastante avançado?

Seus filhos, Laura Lione Carvalho Santos e Ricardo Viana de Carvalho merecem nosso reconhecimento. Com amoroso labor e cuidado ordenaram as folhas, decifraram diversas passagens, com a lente de aumento, ora a desbravar a letra miúda ora a tinta da máquina de escrever, às vezes forte, às vezes pálida, seguindo quanto possível a cartografia da obra, em suas lacunas, para confrontá-la com a intenção do autor.

Fui ao livro com rara emoção, como se eu o conhecesse, antes mesmo de atingi-lo, na memória de um canto perdido. A primeira frase soa assim: “Saibam todos quantos estas linhas lerem ou delas tiverem notícias que não sou mais o tabelião juramentado Diogo Maldonado de Sá nem levanto as madrugadas na garupa do cavalo branco do parente Baltazar.”

A linguagem forte, portanto, e a temperatura bem dosada, entre a rotina da burocracia e o desejo de evasão. Páginas que guardam um amplo laboratório, com suas demandas e tentativas que acontecem agora, diante de nossos olhos, fixadas no modo indicativo do tempo cartáceo. Cintila a mais viva constelação de fragmentos, estrelas e asterismos, cuja potência entre as partes dispersas promove um destino solidário.

Crescem, ao longo do romance, núcleos de atração mútua, demandas virtuais complementares, obra em construção que persegue o sentido geral, partindo de vastos conjuntos elaborados. Isso tudo em contraste, com outras regiões quase fechadas, ilhas rebeldes que brilham, solitárias, como se fossem contos ou novelas. Eis por que o Rei Baltazar é tão fascinante, ao revelar o cenário do avesso, a casa de máquinas da ficção, que pode ser alcançada com grande legibilidade, através de uma celebrada exuberância de ordem sintática e semântica, por onde ecoam, renovadas, as vozes de O coronel e o lobisomem ou de Olha para o céu Frederico.

Tenho saudades de José Cândido de Carvalho, de nossos encontros casuais na estação das barcas ou no centro da cidade, nos dois lados da baía de Guanabara, no balcão de um café. Alegra saber que o Rei Baltazar escapou de uma espera quase interminável, como a de um dom Sebastião, que nunca se apresenta, guardado em algum escaninho, com risco de naufrágio iminente, entre a poeira e o descaso, onde terminam alguns capítulos importantes de nossa história literária. Mas ele adquiriu finalmente densidade, pompa e circunstância. E com alegria podemos dizer, e a plenos pulmões: Vivas ao Rei!

 

O Globo, 02/11/2016