Texto de autoria do Acadêmico Josué Montello
Quando Austregésilo de Athayde completou noventa anos, eu tive a oportunidade de reconhecer, em artigo publicado no Jornal do Brasil, de 20 de setembro de 1988, que esse marco etário, não sendo mais a juventude, como ele próprio desejaria que fosse, não correspondia, entretanto, no seu caso pessoal, à velhice plena com o apoio natural da bengala. A cabeça clara, o gosto da vida, o apego à presidência da Academia, o pendor do convívio humano, tudo isso constituiria um desmentido à ancianidade que os noventa anos anunciavam.
Certo, dispensando os bons préstimo da bengala, Athayde redobrava de cautela no seu passo comedido, e foi assim que ainda o vimos, por mais alguns anos, à frente da Casa de Machado de Assis.
Eu que cheguei à Academia pouco depois de sua eleição para suceder a Oliveira Viana, na cadeira fundada por Alberto de Oliveira, pude ser testemunha da grande obra que ele ali realizaria e que me levaria a colocar-lhe o pequeno busto em bronze, sobre a peanha respectiva, no salão de honra da instituição hoje centenária.
A tendência de cada um de nós, à medida que acumulamos as balizas de idade que o tempo nos proporciona, naturalmente nos leva a pôr de lado, na rotina da vida pública, os convites vulgares e as obrigações dispensáveis, para dar preferência aos atos imprescindíveis em que nossa ausência poderia ser interpretada como desapreço ou descortesia.
Austregésilo de Athayde, já nonagenário, ia gostosamente a todos os atos da vida pública a que era convidado. Onde quer que fosse. Ou de noite ou de dia. Longe ou perto. e tanto fazia ser a preferência quanto o batizado na igrejinha mais distante. E como a cabeça branca e despenteada sempre o individualizava, não tardava a ser reconhecido. Nesses momentos sabia acenar prazerosamente, distribuindo abraços, autógrafos e apertos demão, enquanto as palmas estrondavam à sua passagem.
Ia ao Teatro Municipal como ao Canecão. Fruindo a popularidade de sua figura e de seu nome. Aclamado, prontamente correspondia às palmas com o discurso de improviso, para recolher os aplausos entusiásticos ao fim da oração. Era também assim na Academia.
Em Paris, quando ali morei como embaixador do Brasil junto à Unesco, ainda encontrei a ressonância da passagem de Athayde quando participou da redação histórica da Declaração Universal dos Direitos Humanos, como membro da delegação brasileira, já que lhe coube, por sua atuação e por seu prestígio pessoal, encaminhar à votação final o texto definitivo do documento internacional, no discurso que então p roferiu, como companheiro de René Cassin. Por isso, quando se fez silêncio sobre seu nome nas comemorações do centenário de seu colega, em ato público da Unesco, prontamente pedi a palavra para lembrar que, ao lado de René Cassin, estava Austregésilo de Athayde, meu confrade da Academia Brasileira, grande jornalista e cidadão do mundo.
Se Austregésilo de Athayde, no Anuário da Academia Brasileira, tem ali uma bibliografia literária pequena, com um livro de contos e um romance, a verdade é que, ao longo de mais de setenta anos, ele soube ser o grande jornalista militante, com seu artigo diário e um editorial anônimo no jornal que exemplarmente dirigia, ao lado de seu amigo Assis Chateaubriand. Sobem assim a vários milhares as crônicas, os sueltos, as críticas literária em que porfiadamente se multiplicou e que lhe deram o renome de que nos orgulhamos.
Testemunha de sua obra na Academia, pude ver que ele soube dar à Casa de Machado de Assis um exemplo a mais de sua operosidade construtiva, desde que ali chegou. Por esse tempo, a despeito da herança do livreiro Francisco Alves, que legara à Academia todo o seu patrimônio, constituído sobretudo de bens imóveis, já não dispúnhamos de recursos para enterrarmos condignamente os nossos mortos. E por aí começou Athayde a sua obra benemérita.
E foi adiante. Ampliou-lhe os recursos, com o zelo por seu patrimônio. Para isso batia em portas que se iam abrindo com o prestígio de seu nome e de sua palavra. E foi esse, andando o tempo, o segredo de sua continuidade administrativa. Zelava por tudo. Obstinadamente.
Mais de uma vez tive oportunidade de lhe dizer que ele, como ex-aluno do Seminário da Prainha, em Fortaleza, do qual saiu em véspera de ordenar-se –, havia trazido dali, associado ao seu saber eclesiástico, o pendor para recolher o óbulo que se destinaria à obra da Matriz. E assim era realmente. Certo, restara-lhe a dúvida de Renan, mas teimava no seu espírito a comunhão divina que o levava ao respeito e aos silêncios na Igreja.
E como lhe dei minha colaboração, quer como secretário-geral da Academia, quer como seu amigo e companheiro, pude testemunhar, ao longo de mais de quarenta anos, o desdobramento obstinado de sua obra benemérita, no gosto de bem realizar em proveito de nossa instituição.
Se dele discordava, dizia-lhe por carta o que pensava, quando nos desencontrávamos na Academia. À noite, pessoalmente ou pelo telefone, encontrávamos sempre o ponto ideal de nossa concordância.
André Maurois, com a experiência de sua obra copiosa, costumava dizer que a glória literária tem este ponto de contato com as viagens aéreas: se é grande demais a nossa bagagem, cobram-nos excesso de peso.
Austregésilo de Athayde, a despeito do muito que escreveu, sem o descanso de um só dia, na sua condição de jornalista, preferiu circunscrever-se ao efêmero, na sua coluna diária, raramente concordando em dar à sua colaboração constante a codificação do livro. E daí também o pendor com que, anuindo em realizar conferências e palestras, sempre as fazia de improviso, com o gosto de pensar em voz alta, de olhos voltados para o público que ia ao seu encontro e calorosamente o aplaudia.
Foi assim também na Academia como seu presidente, embora houvesse criado ali um curso de conferências de que igualmente participava. A ampla cultura literária permitia-lhe o improviso admirável, e disso guardei lembranças memoráveis, notadamente quando comentou a palestra que eu acabara de proferir e a que soube acrescentar os elementos complementares que confirmavam plenamente alguns reparos de minhas conclusões. Assinalemos ainda ter sido essa a derradeira sessão a que presidiu, e ele ia completar noventa e quatro anos, já febril, e a um passo de seu internamento na casa de saúde. Guardo comigo a lembrança de seu esforço em caminhar, apoiando-se no meu braço, já prestes a recolher-se ao leito derradeiro, sem a eventualidade de retornar à Academia – a não ser para que pranteássemos o desfecho de seu silêncio, na casa consternada.
Acompanhei toda a sua luta para erguer os dois edifícios monumentais que integram hoje o patrimônio da Academia e que permitem à instituição boa parte dos recursos necessários à sua existência benemérita, a serviço da língua e da literatura nacional.
De início, ao receber a amplo terreno contíguo à sede da Academia, na avenida Presidente Wilson, no governo do presidente Kubitschek, e que Jânio Quadros, pouco depois, implacavelmente anulou, pondo fim à doação que somente seria restabelecida alguns anos depois, obedecendo à tramitação prudente do Poder Legislativo. Por fim, a inauguração da obra monumental.
Só eu sei a emoção com que proferi o discurso em que lhe disse adeus, no velório da Casa de Machado de Assis, no salão que ele próprio mobiliou e em que, por mais de trinta anos, se despediu dos confrades, nas orações em que exprimiu a consternação de todos nós, à hora dos silêncios definitivos.
Uma tarde, ao visitá-lo na sua pequena sala da Academia, encontrei-o com ar consternado. Perguntei-lhe o que tinha. E dele ouvi esta resposta:
– Um de nossos confrades (e deu-lhe o nome) este há pouco aqui, para me dizer que está certo de que vai morrer este ano. Que é que você acha desse desabafo?
E eu, para pilheriar com ele, desanuviando-lhe o semblante:
– Como você é mestre em discurso fúnebre, como o famoso Bossuet, nosso colega veio aqui lhe dar um bom assunto. Assim você terá tempo para caprichar no elogio dele, escrevendo outra obra-prima.
Athayde sorriu, eu sorri, e com isto desfiz-lhe a consternação momentânea. Nosso convívio, no longo tempo em que tive o privilégio de ser seu companheiro, sempre foi assim, e daí a freqüência com que nos falávamos, mesmo na fase em que, por força de minha vida pública, vivi longe do Rio de Janeiro, quando o telefone era o nosso traço de união.
E daí a saudade dele, que sempre há de morar comigo.