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Seguir "o livrinho"

 

 O governo Temer parece andar em ritmos diferentes, mais harmônico na equipe econômica, claramente comandada por Henrique Meirelles e com coerência de objetivos, confuso nos demais setores, onde se destaca no primeiro momento a figura virtuosamente híbrida de José Serra no Itamaraty, que pode atuar bem em setores que não sejam puramente econômicos.

A qualidade diferenciada de Serra, que já havia se mostrado nos poucos meses em que atuou como senador por São Paulo, sobressaiu nos primeiros dias do novo governo com o enfrentamento sereno, porém vigoroso, do movimento político dos países bolivarianos que tentam no plano internacional viabilizar o que os petistas vendem como narrativa real, mas não passa de luta política rasteira.

A ideia de que estamos vivendo um quadro de ruptura institucional só pode ser aceita por ignorância ou má-fé. E acreditar que a presidente afastada Dilma Rousseff nada tem a ver com o escandaloso esquema de corrupção que destruiu a máquina pública, a partir da Petrobras, só pode ser explicado por interesses particulares de corporações ou pessoais.

Todas as acusações contra a presidente afastada que estão surgindo nas delações premiadas da Operação Lava-Jato, de financiamentos ilegais de campanha até envolvimento pessoal em ações de obstrução de Justiça, e que podem chegar à comprovação de sua culpa pela compra da refinaria de Pasadena, só não puderam entrar no processo de impeachment graças a uma interpretação restrita e politicamente benéfica a um presidente reeleito, que impede que crimes cometidos anteriormente, embora no exercício da presidência, sejam cobrados no novo mandato.

Uma legislação aprovada sem que houvesse reeleição é interpretada literalmente, dando assim ao presidente reeleito carta branca para abusar de todo seu poder político e econômico em benefício próprio no ano eleitoral, como aconteceu durante o ano de 2014.

O rombo nas contas públicas nada mais é do que a conseqüência do uso indevido dos recursos públicos durante justamente o ano da reeleição, último de seu primeiro mandato. Um descuido fez com que as pedaladas e abusos orçamentários, embora mais contidos, continuassem em 2015, permitindo que processo de impeachment pudesse ser aberto.

Mas quem se arvora a analisar a situação do país para criticar as medidas tomadas, como recente editorial do New York Times, precisa conhecer os detalhes legais e políticos em que os fatos se dão para não tirar uma conclusão equivocada. Ninguém está dando um castigo excessivo a uma mulher honesta, está-se apenas usando a legislação possível para corrigir uma situação insustentável.

É o mesmo que dizer que a condenação de Al Capone por fraudes nos impostos  foi um castigo pesado demais para um cidadão comum, sem levar em conta seu passado de crimes. O fato de Eduardo Cunha ser quem é, ou de o ministério Temer ter políticos investigados pelas autoridades, ou o Congresso ter entre seus integrantes centenas de acusados de crimes diversos, sem dúvida é lamentável, mas não pode ser justificativa para perdoar os malfeitos da presidente.

Hoje, na cerimônia de entrega do prêmio Person Of the Year em Nova York, o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga tocará nessa questão controversa. A certa altura afirmará: “Afortunadamente para o Brasil algumas das instituições básicas como o Judiciário, os promotores públicos, a Polícia Federal, e a imprensa livre estão fazendo a suas partes. À luz de ampla evidência de malfeitos, a presidente Rousseff está agora sendo submetida a um julgamento de impeachment de acordo com a devido processo legal, e com a Constituição do Brasil.”

É o começo de uma reação à campanha de difamação petista. O senador Magno Malta, que hoje pode ser rejeitado pelos petistas, mas já foi um aliado importante, falando sobre a corrupção no PT deu um exemplo claro: podemos perdoar os traficantes por que eles ajudam as famílias carentes das comunidades, pagam os enterros, às vezes até mesmo de quem mandaram assassinar?

Os 300 picaretas um dia identificados por Lula no Congresso passaram a ser cúmplices dos esquemas de corrupção montados pelo PT, e depois se voltaram contra ele, por vingança ou outro motivo qualquer, o que não retira dos fatos ocorridos seu teor ilegal e criminoso.

Se esse mesmo Congresso, ao final do julgamento, por motivos políticos vis ou virtuosos, em revolta contra Temer, absolverem a presidente Dilma e a trouxerem de volta à presidência da República, se transformarão em homens de bem? Voltarão a fazer parte do governo petista, como sempre fizeram?

Que é preciso realizar uma reforma política que reduza a chance de picaretas e bandidos encontrarem no foro privilegiado uma proteção a suas bandidagens, não há dúvida. Mas, enquanto não se torna realidade esse desejo, seguir "o livrinho" (a Constituição) é o melhor caminho.        

O Globo, 17/05/2016