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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Alcântara Machado

RESPOSTA DO SR. ALCÂNTARA MACHADO

A presença invisível de três vultos representativos de gerações muito dissemelhantes, mas igualmente assinaladas, enobrece a Cadeira, que, por decreto da Academia, passais a compossuir com eles de hoje para todo o sempre, Sr. Paulo Setúbal.

PEDRO LUÍS

O patrono é o vate de inspiração e verbo varonis, anunciador do movimento espiritual, que teve em Castro Alves a mais fascinante das encarnações.
A simples enunciação do nome de Pedro Luís invadem-nos a consciência algumas dentre as imagens estridentes e vistosas, que no penúltimo quartel do século transato fizeram a delícia de nossos maiores.
Vemo-la apontar “no escuro do horizonte”, olhos povoados de alucinações, cabelos desgrenhados pelo vendaval, com o seu cortejo patético de abominações e de heroísmos, a Terribilis Dea.
Junto à mole de bronze e de granito, votada à glorificação do fundador do Império, ei-la que se levanta, saída das entranhas da terra, a sombra de Tiradentes,

Triste, pálido, calado,
No pelourinho, de pé.
À investida de “lanças fumegantes, brandidas por demônios”, cambaleiam e tombam, à distância

Da grande morte os grandes voluntários,
Da liberdade os Briareus tremendos,

ou, em linguagem pedestre e cotidiana, os malogrados revolucionários poloneses de 63.
Posto de lado o que age em tudo isso de ênfase caduca, lembremo-nos somente de como essas rajadas de indignação e entusiasmo arejaram e sanearam o ambiente da época, empestado pela pieguice de bardos choramingas, e propiciaram o advento de um lirismo desenfreado e palavroso, mas transbordante de saúde e mocidade.

LUÍS GUIMARÃES JÚNIOR

Veio um dia o enjôo das alturas, em que se perdem os condores; e a intemperança retórica voltou a ser monopólio dos tribunos; a solução dos problemas sociais, passatempo enfadonho e rendoso dos estadistas; a poesia, arte mais delicada, mais difícil e mais tranqüila.
Dentre os poetas houve então quem abrisse tenda de ourives e passasse a trabalhar com volúpia as gemas e metais de preço; e quem desse em imitar os escultores, lavrando febrilmente os mármores importados, em navios franceses, do Lácio e da Hélade. Outros, menos ambiciosos, se contentaram em fazer versos. Todos, porém, numa reação necessária contra os desmandos românticos, impuseram, com maior ou menor fortuna, ao sentimento o recato, à imaginação a continência, à forma a disciplina. É o tempo em que floresce Luís Guimarães Júnior.

Por que razão, chamado a substituí-lo nesta Casa, subterfugiu o vosso egrégio antecessor a estudar-lhe a personalidade radiosa? A incapacidade que proclamou, de entendê-lo, ao cabo de leitura vinte vezes reiterada, para “penetrar-se de suas paixões” e contagiar-se “de sua alma enamorada e pura”, tem as aparências todas de uma evasiva. Não o será talvez: ao que dizem, Flaubert não compreendia Lamartine, o qual, por seu turno, não compreendia La Fontaine.

Se de algum defeito se ressentem as páginas de prosa, já esquecidas, dos Contos sem Pretensão, e os poemas sempre vivazes dos Sonetos e Rimas, é exatamente da carência de profundeza e densidade. Falam singelamente de cousas triviais: o culto quase religioso da família, a adoração quase ingênua da criatura eleita, o amor quase físico do pedaço de chão em que nascemos. Não recordam jamais as beberagens complicadas e perversas, que agridem o paladar e derrancam o estômago. Pensamento e estilo são, ao revés, pela transparência e pelo timbre, como a água cristalina, cheia de simplicidade honesta e de frescura, que irrompe da rocha viva em fontes cantadeiras.

Ninguém menos sibilino do que o autor de “Eva”, de “Fora da barra”, da “Visita à casa paterna”, da “Primeira entrevista. O tom é sempre o mesmo do soneto liminar:

O coração que bate neste peito
E que bate por ti unicamente,
O coração outrora independente,
Hoje humilde, cativo e satisfeito,

Quando eu cair, enfim, morto e desfeito,
Quando a hora soar lugubremente
Do repouso final, tranqüilo e crente
Irá dormir no derradeiro leito;

E quando um dia fores, comovida,
Branca visão que entre os sepulcros erra,
Visitar minha fúnebre guarida,

O coração que todo em si te encerra,
Sentido-te chegar, mulher querida,
Palpitará de amor dentro da terra.

Não sei como em lírico de fluência e espontaneidade tamanha, Fialho de Almeida conseguiu vislumbrar um artista devorado pela ânsia da perfeição plástica, a manejar sem descanso o buril paciente. A verdade é que Luís Guimarães Júnior se alonga do Parnasianismo na escolha dos temas e também na fatura, que investe amiúde contra as fórmulas implacáveis da escola. Não o empolgaram, nem a beleza das linhas, dos volumes, do colorido, nem a opulência ou o pitoresco do vocabulário ou das rimas. O que lhe importa sobremaneira é a cadência, a melodia, a música do verso.

Outra não poderia ser a atitude estética de um auditivo de seu porte. Quem há que desconheça quanto predominaram as sensações visuais de Victor Hugo e as olfativas em Baudelaire? À audição cabe a supremacia sobre os outros sentidos no intérprete das “Vozes da noite”, da “Voz de Moema”, da “Voz das árvores”, da “Cantiga para adormecer”, do “Piano”, da “Guitarra”.

São as ondas sonoras que lhe trazem a revelação do universo. O oceano parece-lhe “todo um só gemido”. Dos rios morenos sabe apenas que soluçam convulsivamente. A noite se resume num silêncio enorme, rasgado de espaço a espaço pelos “uivos assustados dos cães”, pelos “urros desconformes das onças”, pela sonolenta melopéia das senzalas, e que, afinal sucumbe, ferido de morte pelo “canto festival dos galos”. Fala a divindade; e repete-lhe as palavras o Cruzeiro do Sul. Falam com meiguice infinita os olhos das madonas silenciosas. Fala o arvoredo: mangueiras e palmeiras, tagarelas e indiscretas (não fossem elas do gênero feminino...), divulgam as confidências ouvidas de namorados incautos. Cantam as estrofes à maneira de rouxinóis medrosos. “Os boêmios vão cantando pelas estradas reais.” É, entretanto, a voz da mulher que acima de todas se eleva na sinfonia magnífica de que participam os seres criados e incriados: voz “trêmula e queixosa” de escrava, que ao longe se despedaça em “doloridos ais”; voz de exilada, “harmoniosa e branda”, em que sussurram os mares e murmuram as corredeiras da pátria ausente; “voz de contralto e de rainha”, ardente e grave, a suspirar como as valsas de Strauss num violoncelo; voz encharcada de pranto, em que a alma apaixonada se esvai “da pálida Moema”.

JOÃO RIBEIRO

A esse homem dotado maternalmente pela natureza de traços regulares, olhos magnéticos de domador de feras e multidões, máscara dos grandes emotivos, nervosa e fremente; a esse diplomata obrigado por dever de ofício à galanteria no trato, distinção nas maneiras, apuro no trajar; consciência ancorada solidamente no porto seguro do catolicismo; coração vibrante de sensibilidade, limpo de fel, inóspito à malícia; engenho menos poderoso do que delicado e cultura mais replicante do que profunda, sucede entre nós João Ribeiro.

Se não fosse o receio de infringir a máxima proibitiva do emprego de palavras maiores do que as cousas, diria que ele constitui o avesso ou a antítese de quem o precedeu.

Estamos a vê-lo, com aquele ar muito seu de caboclo ensimesmado e aquela impressionante parecença com certas efígies populares de Sarmiento. Brevilíneo de compleição. Fisionomia estagnada. Olhar emboscado por trás das pálpebras solevantadas e espessas. Lábios carnudos, em que, de quando em quando, se desenha um sorriso equívoco. Gestos carregados de preguiça. Não enverga, como tanto lhe aprouvera e iria muito bem com o gosto abacial, o hábito dos frades, sumaríssimo e folgado; mas a vestimenta se limita a desempenhar com displicência manifesta a função meramente policial de impedir a nudez. Livros, folhetos, jornais atravancam os bolsos do casaco, ameaçando-lhes a integridade. Só o laço da gravata denuncia a intervenção de mãos cuidadosas. Mãos de esposa ou de filha, certamente.
Sob a modorra, o desalinho, a senilidade aparente há em constante vibração um espírito luminoso e travesso, maravilhoso de graça, penetração e agilidade. A tapera é o esconderijo de Ariel. João Ribeiro anda fantasiado de fulano de tal.

Quantas vezes se há dito e redito que ele conservou até ao fim as graças da juventude! Conservou-as, acrescentado-lhes, todavia, as forças da madureza. A sua mocidade vitalícia é como a dos troncos seculares, sempre iguais e sempre diversos, que periodicamente se desvestem das folhas caducantes e dos galhos mortos e tornam a enfolhar-se e florescer, integrados no ritmo da vida. Vem daí o prestígio singular da obra que deixou. Encanta-nos a todos, antigos e modernos, porque realiza o milagre de fundir o que na antiguidade existe de suculento e a atualidade encerra de saboroso.

Dos velhos, dos que foram longamente humilhados e traídos pelo destino, dos que perderam aos tassalhos, em amputações brutais, o melhor de si mesmos, tem a melancolia surda e imanente, o desengano sem azedume, a desdenhosa conformidade com a fragilidade alheia e as injustiças da fortuna, que compõem a verdadeira sabedoria.

Dos moços, o desapego aos bens perituros, a reação instintiva contra as afirmações dogmáticas, a paixão do inédito, a versatilidade nas idéias e nos sentimentos. A versatilidade, sobretudo. Confessa-o, quando se reconhece na imagem da inconstância. “A vitória da instabilidade”, reza a epígrafe de um retrato literário. Serviria para o perfil de João Ribeiro.

Das inconseqüências em que resvala não se vexa porque todas as verdades se lhe afiguram contingentes e transitórias. Começa por atacar as novas correntes literárias: acaba na compreensão ou, pelo menos, na tolerância. Abalizado em estudos de lingüística, faz-se o mais autorizado e querido dos gramaticólogos; o que não o inibe de insultar a gramática, chamando-lhe “o esgoto que recolhe a atrabílis e as revoltas dos desequilíbrios mentais”. Sente-se morrer de vagarosa asfixia no ambiente da pátria; e, azado o ensejo de saciar “a fome de Europa”, que o tortura, salteiam-no ímpetos de voltar do caminho. Acolhe com hostilidade o regime republicano, triunfo insolente da civilização mulata; mas acompanha Lúcio de Mendonça em rompantes jacobinos e termina simpatizante do comunismo russo. Versa amorosamente os escritos de Vieira, Bernardes, Fr. Luís de Sousa, divulgando-os, e o que é mais, imitando-lhes com discernimento as louçanias. Felicita-se, entretanto, por vê-los defuntos enterrados na indiferença pública; e lindamente aclama no povo brasileiro o maior dos clássicos. Na intimidade mete a ridículo a Academia, tão desejada a princípio como consagração a nenhuma outra comparável, testemunho decisivo de que non nihil ergo sumus, vestíbulo suntuoso, embora um tanto funéreo, da tranqüilidade final.

Nessas contradições, que sublinho em louvor da lealdade intelectual e sentimental do mestre e do poder que tinha de se renovar incessantemente, residem a sua modernidade e o seu encanto. A sua modernidade, se por essa palavra se nomeia, consoante a definição de Paul Valery, a livre coexistência, em um espírito culto, das idéias, dos sistemas, das tendências mais díspares. O seu encanto: segui-lo é desprezar a linha reta, caminho complanado e curto, mas insípido, e enveredar por estrada coleante e caprichosa, eriçada de bifurcações e cotovelos, que vai fazendo e desfazendo cenários, improvisando perspectivas e renteando precipícios. A gente arrisca-se a perder o fôlego e a própria salvação eterna. Mas não se aborrece nunca.

Ninguém se enfada na companhia de homens assim, doente de curiosidade, guloso de experiências, cuja divisa bem poderia ser o conceito de Lessing: a volúpia suprema não está na posse, mas na pesquisa da verdade. Ou o fecho de “Ariane”, de Pierre Louys: mais doce do que a conquista é a esperança, e mais doce do que esta é a saudade.

Pela curiosidade arrastado, explora quase todas as províncias da arte. Enamora-se da música. Tenta a seguir a escultura. É a pintura que o seduz por último.

Não há, de outra parte, gênero literário por que se não apaixone, com exceção da eloqüência. Tem-lhe verdadeira fobia. A tal ponto que às vezes lhe acontece estremunhar, suando frio, esganado por este pesadelo horripilante: sonha-se alvo de tremenda manifestação de apreço, obrigado a discursos torrenciais.

Como de praxe é de lira em punho que ingressa na literatura. Vítima do andaço reinante, levanta aos deuses e semideuses da Grécia um templo, que declara “feito de sangue”, de seu trigueiro sangue nordestino. É a mesma aspiração de Albert Samain “ce rêve... de bâtir au soleil un temple ionien”. O resultado não podia ser outro: alguns sonetos puramente cerebrais, da algidez e rigidez do mármore pentélico. João Ribeiro não vacila: sepulta-os “no silêncio eterno das cousas mortas”. Porque sabe que “poesia é sonho e emoção”; e diz-lhe a consciência que não pertence ao número dos que se comovem com facilidade e consentem em mostrar-se comovidos. Eis, precisamente, a única restrição que me atrevo a fazer a uma produção tão grande na abundância, na variedade e na perfeição formal. Nada lhe falta, senão o calor da ternura humana, o rugido das paixões humanas, a fraqueza humana das lágrimas.
Se o poeta não lucrou sensivelmente em se embrenhar pela antiguidade grega em busca de Vênus Miriônima e de ninfas esquivas, muito ganhou o prosador com a viagem que em espírito empreendeu à terra natal da razão soberana e da beleza pura. Na contemplação de Palas Atena aprendeu o aticismo.
Assim educado, colocou-se na primeira linha dos escritores contemporâneos. Pela nitidez da inteligência. Pela erudição multiciente. Pela linguagem clara e intemerata, iluminada com as virtudes cardeais do estilo. A frase tem a forma e o colorido naturais da idéia. A palavra está sintonizada com o pensamento.

Quantas riquezas o sábio polígrafo sergipano incorporou ao nosso patrimônio espiritual!
Reconciliou-nos com a gramática, transformando a megera em dama conversável.

Renovou a historiografia nacional, com a fixação dos tipos fundamentais da população, com o realce atribuído à ação dos fatores econômicos, e ainda com o entendimento, que revelou, de quanto influiu em nossa formação a existência de focos autônomos de civilizamento e cultura.

Imprimiu rumo científico aos estudos de folclore, esclarecendo-os à luz da etnografia e da história, e mostrando as correspondências inesperadas entre as parlendas infantis, as superstições, as parêmias, as fábulas, que correm por aí, e outras muito distantes no tempo e no espaço.

Fez, como bem acentua Múcio Leão, o jornalismo de idéias, o jornalismo que se compraz na criação livre da beleza e na divulgação das últimas aquisições do espírito humano.

Desarmou da férula magistral a crítica indígena. Inimigo pessoal dos dogmas, respeitoso da liberdade alheia, porque cioso da liberdade própria, conquistada à custa de muitas decepções e renúncias, nunca se arvorou em diretor enérgico da consciência estética do próximo. Situou-se invariavelmente na atitude de espectador complacente e desabusado do mundo das letras. Se lhe agradava o espetáculo, batia palmas, com uma discrição que as valorizava. No caso contrário dormia a sono solto, o que não o impedia de cumprimentar afinal o autor da peça com uma das muitas fórmulas ambíguas de cortesia, que servem indiferentemente para dar parabéns ou exprimir condolências.

Em apólogos e contos, de linguagem semelhante à de Manuel Bernardes em Nova Floresta, e intenção igual à de Anatole, no Estojo de Nácar, vazou toda a filosofia desencantada e toda a ironia sutil de um céptico bem humorado. A sensualidade também. De tais composições, adubadas, por vezes, “das picantes especiarias levantinas”, a que alude Camilo, poder-se-á dizer, como Horácio de certos episódios da mitologia, que ensinam a pecar.

Dentre os que se detiveram, na admiração dessa figura complexa de erudito e de artista, fecunda em aspectos imprevistos e evoluções atrevidas, houve quem recordasse Voltaire, Montaigne, Pascal. Atento à medida, não consentiria ele na prova terrível, que é a aproximação de culminâncias tamanhas. Confessaria apenas quanto se lhe entranhara no pensamento o veneno delicioso de Ernest Renan. Renaniano, o estilo maneiro e leve, com a sua harmonia insinuante e a sua elegância feita de clareza e sobriedade. Renaniana, a dileção pelos estudos lingüísticos e históricos, promovidos a instrumentos de precisão para o conhecimento dos fatos do espírito e chamados a usurpar o papel da filosofia na definição do sentido último da existência. E ainda a posição puramente sentimental de piedade sem fé e incredulidade benévola em face de todas as religiões, consideradas, a um tempo, falsas e verdadeiras, porque satisfazem momentaneamente a necessidade implacável, que sentimos, de  encarar as cousas sub specie æternitatis, e enganar a fome, que nos devora, de imortalidade. E, enfim, o cristianismo subconsciente nesse irreligioso, a obsessão do Crucificado nesse incréu, a paixão desse ateu por tudo quanto fala de Jesus e de seus confessores; o que autoriza Plínio Barreto a dizer que ele se consumiu em rondar a Casa do Senhor, atraído pela formosura do culto, mas sem a coragem de entrar no santuário. Só no derradeiro instante se decidiu a fazê-lo, e, à maneira do quarto rei mago, da Floresta de Exemplos, pôde murmurar, “com a voz sumida e todavia alegre: “eu O vi”.

O mestre conservou até o fim a convicção de que a vida é boa como um fruto gostoso. Da mesma certeza, ou da mesma ilusão, participava o discípulo, que, chegado ao termo da longa e cordial entrevista com o planeta, declarava levar saudades, sem saber se as deixaria. Deixou-as, unânimes e ardentes, o homem, a quem o destino concedeu a ventura insólita de se ver consagrado pela justiça dos contemporâneos, como um dos grandes momentos de gentileza e esplendor da inteligência brasileira.

PAULO SETÚBAL

Os condôminos da Cadeira em que vos estamos empossando, Sr. Paulo Setúbal, amaram sobre todas as cousas as letras floridas. Nenhum deles, porém, alcançou a mercê, que vos coube, de servi-las exclusivamente.

Nelas confinastes toda a atividade social; e a tal ponto se contém a biografia do homem na bibliografia do escritor, que, eliminado este, não se sabe o que restará daquele.

Murmuram, é certo, os malfalantes que há tempos desempenhastes vagamente um vago mandato de deputado. Tão rápido, todavia, e discreto foi esse comércio com a política provinciana que não destes sequer ao povo o direito e o prazer de vos ser ingrato. Assoalha-se também que no escuro do porão, entre badulaques e teias de aranha, conservais pudicamente enlatado um diploma de bacharel. Mas (perdoai-me a franqueza) outro vestígio não deixastes de possíveis incursões pelo mundo jurídico, senão o parecer que, antes de formado, tivestes a audácia de emitir com referência a um “caso intrincadíssimo de esbulho”. Nada cobrastes do cliente ocasional, porque vo-lo proibiu a consciência. Quem vos pagou regiamente a consulta foi a vossa namorada de então, com dois daqueles beijos “estaladinhos e doces” de sua especialidade.

Não demanda coragem escapar, como escapastes, à advocacia: basta a impaciência de vencer. Nem é preciso grandeza de alma para não entrar nas campanhas liliputianas dos partidos: basta (ai de mim!) um pouquinho de juízo.

Extraordinário é que, em paga do muito que lhe quereis, a literatura vos tenha dado, com a notoriedade, o pão de cada dia. “Filho querido da Vitória”, conquistastes de um golpe e consolidastes por meio de sucessivos triunfos a estima dos entendidos e o favor de um público fiel e crescente, consumidor insaciável dos livros, com que vindes enriquecendo, no sentido figurado, as letras nacionais, e, no sentido próprio, os vossos editores. Assim vos tornastes o mais popular, ou melhor, o menos desconhecido dentre os escritores pátrios da atualidade. Insigne é esse privilégio que vos outorgaram os fados em terra como a nossa, onde para não perecer à míngua, o escritor tem de submeter, quase sempre à contingência amarga de se acomodar na estreiteza de um emprego público.
Como conseguistes realizar o prodígio?

Submisso à tradição, principiastes por um livro de versos. Monteiro Lobato e Ricardo Gonçalves encabeçavam por esse tempo, em São Paulo, um movimento de resistência contra o exotismo na seleção dos motivos e o pedantismo na escolha da linguagem. Como eles procurastes inspiração na gleba em que vivemos e na gente que nos cerca. Matéria-prima que, em verdade, não é das mais preciosas. Mas que encerra, afinal de contas, um pouco daquela substância lírica espalhada em todos os seres do universo nas horas divinas da criação. A missão do artista consiste em descobrir e isolar da ganga, em que se oculta, essa poesia difusa e inconsciente, como quem trabalha toneladas de minério humilde, para encontrar quantidades quase imponderáveis de rádio.

Alma Cabocla é simplesmente a crônica de umas férias de estudante, vividas na atmosfera sadia e pacata do interior paulista.

Nenhuma paisagem ilustre. Nada de florestas falsificadas pela civilização, campinas vestidas de acordo com o figurino europeu, arroios freqüentados por náiades. O mato “cerrado e umbroso”, feito à revelia da silvicultura, pela natureza, de “perobas, guarantãs, jequitibás, pau-d’alhos”, com os seus largos silêncios retalhados, de quando em quando, por trilos de bem-te-vis e gaturamos, pios de nambus, estalos secos de taquaras. O campo de “joás e de guaxumas”, todo enverrugado de cupins. Águas de lagoas paradas, “onde bebem juritis”; ribeirões sentenciados a trabalhos forçados nos monjolos; e, ao fundo, o rio tutelar que, traçando o destino da raça, vai resolutamente para o sertão. Lavouras bem nossas: milharais empenachados de ouro; verdes touceiras de cana; cafeeiros que sobem devagarzinho pelos morros e descem depressa pelas barrocas. Nossos, “os galpões de pau-a-pique”; a colônia “graciosa como uma vila, risonha como um pombal”; e, “no azul do espigão”, o solar fazendeiro, com “a varanda cheirosa de bogaris”, e os terreiros negros de piche, em que se roda o café.

Nenhuma cena que não seja copiada do natural. A queimada: “estalam os cipós; chocalham as serpentes; estouram os bambus, rachando com fragor”. A moenda: “o engenho todo exala um cheiro a mosto, um forte cheiro de garapa azeda”. A noite de São João: “lá fora, à luz da fogueira... a caboclada a bailar... num tremendo bate-pé”; no salão, os jogos de prendas, a quadrilha francesa, a menina a “batucar no teclado uns trechos do Guarani”; o moço que, depois de muito rogado, se dispõe a declamar alguns versos “ao som da velha Dalila”.

Nenhuma personagem de exceção. Gente de ambições curtas, coração humilde, defeitos escancarados. Este volta do vilarejo, tresandando a pinga e “querendo à força brigar”. Aquele, sempre acompanhado “de um perdigueiro malhado, que salta no carreador”, vive a contar caçadas imaginárias de onças que nunca viu.

É no prosaísmo rasteiro desse ambiente que o estudante encontra a normalista. Ele, metido em seu terno de brim, não tem cousa alguma de Lamartine. Ela, bem posta em seu vestido de casimira, não se parece com Graziela. São dois namorados cem por cento auriverdes. Namoram-se escandalosamente na igreja, durante a novena: à saída, terminada a reza; e nos passeios pela estrada afora. Acabadas as férias, ele volta para a cidade. É tudo. A moralidade da aventura banal, em que nada acontece, contam-se estes versos, que estão evidentemente fora da moda, mais toda a gente sabe de cor, ao invés do que sucede com outros, moderníssimos, fáceis de fazer e impossível de guardar:

Dos lábios que me beijaram,
Dos braços que me abraçaram,
Já não me lembro... nem sei...
São tantas as que me amaram,
São tantas as que eu amei!

Mas tu (que rude contraste!),
Tu que jamais me beijaste,
Tu que jamais abracei,
Só tu nest’alma ficaste
De todas as que eu amei...

 São assim os vossos poemas: fartos de emoção, ricos de naturalidade e frescura, capazes de traduzir em forma singela e democrática o que Hermes Fontes chamava os estados aristocráticos da sensibilidade.

Não me acreditaríeis se afirmasse terdes escapado sempre à vulgaridade, pecado específico da poesia regional. Mas, ainda nos trechos de concepção menos feliz, a frase é tão melodiosa, que inebriados pela música, chegamos a esquecer a letra.

*  *  *

Sofreis, como poucos, a fascinação do passado. Depois de vos haverdes debruçado sobre o vosso, minúsculo e macio, de menino e adolescente, quisestes conhecer o da nacionalidade.
Grande surpresa foi para vós descobri-lo bem diferente daquele, convencional e antipático, cerimonioso e carrancudo, atulhado de nomes e datas, mas vazio de interesse e de poesia, que havíeis aprendido nos bancos escolares. Em alfarrábios esquecidos encontrastes as lendas encantadas, as aventuras novelescas, as anedotas, as indiscrições em que toda uma época se desnuda e confessa, banidas, por incompatíveis com a circunspeção doutoral, dos tratados e compêndios. E tão maravilhoso ficastes, que desde então outra cousa não tendes feito senão partir conosco os achados valiosos.

Para melhor divulgá-los, na cruzada que empreendestes contra a “vastíssima ignorância nacional”, adotastes, como veículo, as fórmulas da literatura de ficção. Provavelmente, porque entendeis, como Anatole France, que somente se digere com facilidade aquilo que se come com prazer.

Ensinais história, contando histórias. Perderá com isso, forçosamente, a verdade? Não acredito. Lá está no soneto vestibular de L’Aiglon: um sonho é às vezes menos mentiroso do que um documento. O alexandrino de Rostand se contenta em reproduzir o pensamento de grandes sabedores. De Macaulay, quando observa que as épocas defuntas formam território pertencente em partes iguais à razão e à fantasia. De Renan, para quem nos estudos históricos a alma é tão necessária como nas obras de arte. E, entre nós, de Euclides da Cunha, que reclama, para o entendimento perfeito do que se foi, a colaboração da poesia com a erudição. De outra forma teremos, quando muito, um relatório exato, minucioso e glacial. Não a história, que é sempre criação da consciência de quem a escreve, como interpretação, que deve ser, do que pensaram, sentiram e quiseram os mortos. Só a imaginação tem o poder miraculoso de tornar presente o passado, restituindo-lhe o ânimo, a voz, o colorido, o movimento, as aparências da vida, e transportando-nos, com as suas botas-de-sete-léguas, para o cenário e o clima psicológico de outrora.

Possuís, por mercê de Deus, essa faculdade mágica. Mostram-no os vossos ensaios de História romanceada.

Romance histórico, diz a subepígrafe de alguns. Sem fundamento, a meu ver. As duas variedades literárias se compõem com os mesmos ingredientes. A diferença está na dosagem. Numa a invenção é quase tudo: a antiguidade fornece apenas a tela, em que se exerce livremente a inspiração do pintor. A outra mais se parece com o trabalho de restauração de velhos painéis desbotados e danificados pelo tempo: o artista se contenta em preencher os claros, avivar as cores, acentuar os traços.

Precisamente o que fazeis. Nem sempre se conforma o poeta com a pequenez da parte que lhe abandona o estudioso. Desforra-se, quando se abre o ensejo, com a interpolação, em a narrativa, de episódios e figurantes de que não há notícia nas crônicas. O leitor se apressa em vos perdoar, pois tem consciência de que o vosso intuito não é enganá-lo, mas distraí-lo. São mentirolas tão inocentes como aquelas com que, para divertir o auditório, os advogados romanos costumavam salpimentar as arengas, recurso oratório que Cícero designa pitorescamente por mendaciunculis adspergere. Não faltarão, de outra parte, críticos impertinentes, para pôr em dúvida a exação de certos pormenores. Dirá este que Pedro II nunca foi trigueiro. Aquele, que os mamelucos e sertanistas não falavam o atual subdialeto caipira, e sim a língua geral. Que importa? Não será com o auxílio do microscópio que se poderá apreciar a formosura de um panorama.

Dentre as imagens que retocastes, nenhuma vos apaixonou tão fortemente como a de Pedro I.
Há indivíduos (quem não os conhece?) capazes assim das asneiras mais descabeladas como dos rasgos maiores de abnegação e de heroísmo. Podem ser, tudo depende das circunstâncias, o orgulho ou a vergonha da família, e acabar, conforme o caso, na cadeia ou, prisioneiros do bronze, na praça pública. Mas, por menos estimáveis que sejam, toda a gente lhes consagra, no fundo, uma admiração e um bem-querer mais ou menos confessáveis.

O filho de D. João VI encarna em ponto grande, com o relevo e a ampliação resultantes de sua preeminência no plano da vida nacional, esse personagem destrambelhado e querido. Estamos fartos de lhe saber os defeitos de caráter e os desmandos de procedimento, os repentes brutais de impulsivo e a camaradagem aviltante com os fâmulos do paço, a prepotência desabusada, as demasias da sensualidade, o escândalo do concubinato oficial e das patuscadas grosseiras; e, na esfera política, a dissolução da Constituinte, a repressão crudelíssima do movimento pernambucano, a prisão e o desterro dos Andradas, a insolente exaltação dos Chalaças e dos Plácidos. Mas, em face das parcelas do passivo, quantos gestos cavalheirescos e impressionantes, desde aquele, teatral, do Ipiranga, até a reconquista, para a filha pequenina e imbele, da coroa de Portugal! E quanta magnanimidade em reparar os desacertos a que o arrastavam o temperamento arrebatado e a embriaguez inevitável do poder! A abdicação tem a grandeza de uma expiação voluntária; a entrega do imperador infante a José Bonifácio, a beleza de uma espontânea penitência pública. O próprio reconhecimento dos filhos do pecado, que, apesar dos precedentes ilustres de Luís XIV e de Filipe IV, de Espanha, tanto escandaliza os contemporâneos, desvela a nobreza de um coração disposto a pagar sem regateio as dívidas da carne.

Eis porque não vacilamos em responder pela afirmativa à pergunta que alhures deixastes em suspenso: “E digam agora se D. Pedro I, até em suas estroinices, é ou não um tipo simpático?”

O mesmo não sucede com aquela que, na linguagem do tempo, foi “a moça do Imperador”. A posteridade se recusa a contemplá-la, nimbada de cabelos brancos, no majestoso e lento crepúsculo de matrona. Desinteressa-se do louva-deus, em que os anos transformaram a cantárida. Teima em vê-la, repastada e farta, sensual e prolífica, lautamente instalada na sinecura confortável do concubinato imperial. Faltavam-lhe então, para seduzir-nos, a inteligência e a graça de um Pompadour, com o seu apreço pelas cousas do espírito, inspiradora de artistas e letrados, semeadora de castelos e palácios; como depois lhe faltaram, para nos comover, o calvário de uma La Vallière ou a morte dramática de uma Du Barry.

O que há de mais admirável no formoso livro que lhe consagrastes não é nem a informação abundante, nem o poder evocativo; e sim a delicadeza moral, com que dela soubestes falar isentamente, sem as fraquezas do panegírico e sem as crueldades do libelo.

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Quem vos atrai, a seguir, a atenção é o desempenado e galhardo Maurício de Nassau.
Guia bem falante e bem documentado, mostrais o que era a dominação batava no auge de sua esplendidez precária. Visitamos em vossa amável companhia a Cidade Maurícia, com o Palácio de Friburgo, casa de prazer do príncipe, enfeitada de setecentas palmeiras esbeltas; com “as pontes de rijo tabuado, as grossas fortalezas, as ruelas pitorescas ensombradas de árvores e regadas de águas cantantes”. Daí passamos ao “Recife antigo, tradicional, onde os velhos homens da terra têm as suas casas de varandas de ferro, os senhores de engenho as suas moradas alterosas de boa taipa, os tratantes judeus as suas escuras lojas de moeda e de mercancia”. Assistimos de enfiada à sessão da Câmara dos Escabinos, ao suplício de alguns soldados da Bahia, aos torneios de uma tarde magnífica de cavalhadas. Mais tarde, na calada e no escuro da noite, vamos ao Engenho da Várzea, onde João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros se conjuraram com os principais da colônia, para a expulsão dos hereges. Acompanhamos, enfim, as peripécias da campanha libertadora: o embate dos Tabocas, a matança de Uruaçu, a batalha dos Guararapes.

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Impossível seria passar-vos despercebido o interesse dramático do “acidentado romance de aventuras”, tecido “de surpresas e de acasos” e também de feitos valorosos e de torpezas, que, como em toda a parte, foi na América lusitana o descobrimento do metal fabuloso.

Pela temperatura dos superlativos com que celebrais as façanhas incríveis dos sertanistas, bem se vê que entre eles se inscrevem alguns de vossos maiores, nascidos à margem do rio sagrado, no porto de Araritaguaba. Rudyard Kipling confessa que, para agitá-lo, basta o cheiro das águas livres. A simples visão da corrente maravilhosa do Tietê despertava no paulista de antanho, herdeiro do nomadismo do português e do bugre, o desejo lancinante de partir.

O que conseguiram os barbaçudos “generais do mato” e seus companheiros anônimos de campanha, através de mil padecimentos estoicamente suportados ou cruelmente infligidos, contais, com viveza de tintas e abundância de pormenores, na série de estudos iniciada com A Bandeira de Fernão Dias e entrefechada com O Sonho das Esmeraldas.

É a peleja encarniçada, corpo a corpo, do homem brutal com a terra bruta. Esta, emboscada na mataria impérvia, por trás da linha fortificada das serranias e pronta a desencadear contra o inimigo os índios, as feras, a peste. Aquele, destemido e testarudo; ensinado pela natureza, que é escola de violência, dominado pela idéia fixa de topar um dia com o chão miraculoso, onde se colhe “o fruto sem semear”.
Esse dia amanhece, afinal. Cataguazes, Casca, Sabarabuçu, Cuiabá rendem-se à obstinação dos bandeirantes. Sabida “a quantiosa máquina de ouro que vai pelo sertão”, rolam em grossos caudais pelo caminho riscado a vermelho com o sangue dos pioneiros e de suas vítimas, a nata e a escória da Colônia, potentados e aventureiros, mercadores e pandilhas, frades evadidos do voto de pobreza e mestiças de olhos lânguidos e quadris ondulantes, lascivos docili tremore lumbos.

Espera-os o El-Dorado. O ouro aí está, ao alcance das mãos ávidas, nos veios, nos tabuleiros, nas grupiaras; rutilando à flor da terra, cintilando nas barrancas, faiscando nas areias, tremeluzindo na correnteza dos ribeirões. O que escapa às garras da fazenda real, aí está condenado à esterilidade nas arcas do avarento ou prostituído pelo perdulário à satisfação de apetites grosseiros; convertido em martelos de caninha, jóias de marafonas, paradas de jogadores; a suscitar fraudes e morticínios, rixas e iniqüidades; e, pelo abandono, que provoca, das lavouras de mantimentos, a promover a carestia das utilidades e os horrores da fome, que devasta as Gerais. Vemos então a realidade plagiar a fábula: morresse à míngua, na riqueza, como na miséria. O viajante depara às vezes o cadáver de alguém, morto de inanição, com a sacola abarrotada de granetes amarelos em uma das mãos e mísero sabugo de milho, já roído, na outra.

Pintado, em pinceladas largas, o cenário, desenhais cruelmente os atores. Perdem eles bastante, quando vistos à curta distância, bem iluminados, em toda a sua rudeza e truculência de primitivos. Claro está que me não refiro a bandidos e régulos da marca dos irmãos Lemes; nem a trampolineiros da laia de Sebastião Fernandes do Rego, em que se reúnem a obliqüidade da serpente, a sagacidade da raposa e a voracidade da saúva. Falo, sim, daqueles que a lenda vem disputando à história; dos Fernão Dias, dos Borba Gato, dos Anhangüeras; dos que fizeram imensa esta pátria, legando-nos o encargo, que não cumprimos até agora, de fazê-la grande.

Nada, porém, nos obriga a contemplá-los de perto. Continuemos a vê-los envoltos na bruma da poesia. Por que havemos de trocar a ilusão pela certeza? Quem nos diz que a verdade não está com Charles Le Goffic, para quem a melhor maneira de conhecer é acreditar, e mais vale amar do que saber?
Deste relance de olhos pelo que haveis publicado ressalta, conclusiva, uma impressão de coerência perfeita e unidade profunda.

Poeta, sois o cantor comovido e suave do que São Paulo encerra de mais extreme e castiço, – o interior, a fazenda, o caboclo. Romancista, buscais inspiração nas crônicas em que se conta ingênua ou enfaticamente como se edificou o Brasil. De sorte que até hoje nenhuma página escrevestes em que não lateje o sentimento da nacionalidade.

Nacionalista (desculpai-nos o reparo) não é, nem poderia ser a produção de João Ribeiro, freqüentador assíduo das idéias gerais, dono de pensamento libertário, e cidadão do universo, que, a exemplo de Thoreau, se recusa a considerar o mundo como um composto de povos ou nações. Nacionalista dos quatro costados é a vossa. Com ela não saímos nunca de nós mesmos; porque dentro em nós se comprime e atua a multidão dos mortos, de que descendemos, dramatis personae, ou espectadores silenciosos do passado tão piedosamente reconstruído em vossos livros.

Presentes em nós, aqui se encontram eles. Agradecidos ao que fizestes por salvá-los do extermínio total, que é o esquecimento, vieram comungar convosco, Sr. Paulo Setúbal, a hora de plenitude que estais vivendo; e, pelo ministério da Academia, glorificar em vós uma obra luminosa e sadia que não fala senão das coisas nossas, com o espírito de nossa gente, e uma existência de trabalho e probidade, consagrada toda inteira à semeadura augusta da beleza.