VIDA CAMPÔNIA
Como um caboclo bem rude,
Eu vivo aqui, nesta paz,
Recuperando a saúde,
Que eu esbanjei, quanto pude,
Nas tonteiras de rapaz.
Mal brilha o primeiro raio
Da aurora rubra e louçã,
Eu monto um fogoso baio,
E alegre, e lépido, saio
Pelo esplendor da manhã.
Lord, o meu bravo cachorro,
Vem pela estrada a saltar:
E a várzea, e os pastos, e o morro,
Tudo, a galope, eu percorro,
Numa alegria sem par.
Do mato, cerrado e umbroso,
Vêm cheiros de manacás;
Num pau-d’alho, alto e frondoso,
Vai um concerto furioso
De bem-te-vis e sabiás.
Vespas, cor de ouro brunido,
Lantejouladas de luz,
Fazem, com surdo zumbido,
Num tronco já carcomido,
O escasso mel dos enxus.
Fulgiram, pelos caminhos,
Gotas de luz, como sóis;
Ruflos, canções, burburinhos,
Noivado em todos os ninhos,
Por toda a relva, aranhóis.
E em tudo quanto eu diviso,
Há tal brilho, tal clarão,
Como se, do paraíso,
Deus acendesse um sorriso
Em cada ervinha do chão.
Volto... Os caboclos, no eito,
Vão desbastando os juás.
Eu venho tão satisfeito,
Como se houvesse em meu peito
- Um baile de tangarás!
Apeio. E então, vivo e moço,
No claro terno de brim,
Vou eu, com grande alvoroço,
Sentar-me à mesa do almoço,
Que espera apenas por mim.
Risonha, a fumaça voa
Em densos, cálidos véus:
É o lombo, é a fava, é a leitoa,
- Toda cópia farta e boa,
Dos nossos ricos pitéus!
Depois, ao longo do dia,
Ferve, requeima o verão.
E há pêssego, há melancia,
A fruta nova e sadia
Colhida em plena estação.
À noite, o luar, que fulgura,
Por tudo estende o seu véu.
Brilham estrelas na altura.
Uma infinita doçura
Penetra os campos e o céu.
Nessa calma, enquanto rola
A lua pela amplidão,
Subitamente se evola
O som duma grafonola,
Quebrando a paz do sertão.
Num timbre gasto e confuso,
Pelo silêncio rural,
Ecoa a voz do Caruso,
Velhas canções em desuso,
E fados de Portugal...
Nisto, o relógio badala:
Dez horas. Quê? É tarde assim?
Toda a dormir! Fechem a sala!
A casa inteira se cala,
Tomba um silêncio sem fim...
Cheiro acre, de manjerona,
Lá fora embalsama o ar;
Tudo se aquieta. Ressona...
Eis que uma tarda sanfona
Passa na estrada, a chorar...
(Alma cabocla, 1920.)
A VILA
Lembro-me bem dessa vilota rude,
Onde eu me fui, sem gosto e sem saúde,
Buscar um poiso para os meus cansaços.
Que terra triste! Triste e sertaneja:
A escola, a hospedaria, a antiga igreja,
E a capelinha do Senhor dos Passos...
Na esquina, em frente à Câmara, o barbeiro.
Logo depois, num colossal letreiro,
A Loja Popular do velho Lopes.
E é bem no largo da Matriz que fica
A sempiterna, a clássica botica,
Com seus reclames de óleos e xaropes...
Ah! Foi aí, nesse ermo de tristeza,
Nessa terreola fúnebre e burguesa,
Tão sem encantos, tão descolorida,
Que eu fui viver, com lágrimas e flores,
No mais cruel amor dos meus amores,
A página melhor da minha vida!
(Alma cabocla, 1920.)
A FORASTEIRA
Dissera-me o barbeiro da vilota,
Que essa elegante, essa gentil devota,
Que frequentava assim as ladainhas,
Também quisera, em busca de bons ares,
Passar o mês das férias escolares,
Na mesma terra onde eu passava as minhas.
E ali, na vila, nessa pobre aldeia,
Tão incolor, tão rústica, tão feia,
Povoada de caboclos indigentes,
A forasteira, com seu ar touriste,
Com seu chapéu de plumas, com seu chiste,
Chocava o povo e deslumbrava as gentes!
E eu, que vivia a padecer nesse ermo,
A definhar-me, torturado e enfermo,
Nas nostalgias dessa vila odiosa,
Eu bem sentia, ao ver essa estrangeira,
Que na minh’alma, pela vez primeira,
Brotara a flor duma paixão furiosa...
(Alma cabocla, 1920.)
IDÍLIO
“Vamos!” disseste... E eu disse logo: vamos!
Ia no céu, nos pássaros, nos ramos,
Uma alegria esplêndida e sonora;
E tu, abrindo ao sol, como uma tenda,
Tua sombrinha de custosa renda,
Partimos ambos pela estrada afora...
Eram pastagens largas, eram roças,
Carros de bois, currais, barreadas choças,
E rústicos galpões de pau-a-pique;
Só tu, nessa bucólica simpleza,
Com teu tailleur de casimira inglesa,
Punhas uns tons de mundanismo chic.
E a poeira, e o sol queimante, e a dura estrada,
Nós, papagueando, sem sentirmos nada,
Seguíamos num sonho encantador:
É que a felicidade, como um vinho,
Fazia-nos andar pelo caminho,
Tontos de gozo e bêbedos de amor!
(Alma cabocla, 1920.)
...LAGES
Adeus, São Paulo! Adeus, salões e clubes! Adeus, amigos e noitadas! Adeus, meu querido e triunfante escritório de advocacia. Adeus, esforço e trabalho e vitórias da minha mocidade! Lá foi tudo água abaixo... Ia eu de novo, com as mãos abanando, recomeçar a minha vida em terra estranha, longe do meu Estado, numa cidadezinha que eu nunca vira, boca de sertão, perdida rusticamente entre píncaros de serra. Amarguei no meu coração, com muito fel, esse estraçalhamento dos meus sonhos. Como é desesperadora, amigo, a revolta dum coração materialista. Dum coração que não crê em Deus. Dum coração que põe a sua única mira em ambições e gozos da terra. Eu conheci de perto, naquela hora, essa revolta. Eu a vivi. Por isso, no vaporzinho que me levava a Florianópolis, a todo momento, como um estribilho, eu exclamava, irritantemente, aos companheiros de travessia:
... Crime absurdo,
O crime de nascer. Eu espio-o, vivendo.
Maldita a vida que promete e falta!
Que mostra o céu prendendo-nos à terra,
Que dando as asas não permite o voo.
* * *
...Lages foi uma surpresa para mim. Cidade pequena, é certo, mas cidade graciosa, pitorescamente aninhada num espigão de morro, com gentes boas e acolhedoras, e, sobretudo, novidade saborosa para quem vinha do sul, com as suas grandes estâncias de gado, e a sua vida gauchesca tão colorida e típica, que é um dos encantos do Brasil rural. Vivi em Lages dois anos. Dois anos em que conheci de perto os usos daquelas paragens, em que percorri, no meu macho gateado, aquelas coxilhas ondeantes e sem termo; em que bebi na cuia tosca, por bombas de prata, o chimarrão fervente e amargo que corria a roda de boca em boca. Muita vez, por aquelas vastas campanhas povoadas de gadaria, assisti à lida brava dos rodeios, com os peões de bombacha e chiripá, chapéu de barbicacho amarrado no queixo, disparando fogosamente atrás de reses desgarradas, - laça! laça! - enquanto as armadas feitas rodopiavam no ar e a cachorrada se arremetia, furiosa e ladrando, no rastro das fujonas.
Quando eu cheguei a Lages, a Gripe Espanhola já havia andado por lá e devastado o quanto pôde. Morrera muita gente. Eu, por acaso, mal me instalei, fiquei sendo o único advogado formado da terra. Fui, sem delongas, procurado para tratar de alguns inventários. Entrei com o pé direito no foro. Tratei dos inventários, fui feliz, ganhei fama. A partir daí não me faltou mais serviço. A minha estrela, não há negar, era realmente propícia. Em São Paulo ou em Lages, pouco importa, ela sempre luzia. Eu dei de trabalhar sem tréguas. E de ganhar dinheiro com fartura. Mas o dinheiro vinha e ia-se. Ia-se para onde? Ia-se água abaixo, sem mãos a medir, para o jogo. Sim, meu amigo, para o jogo. Porque em Lages, é preciso que você o saiba, eu aprendi a jogar. Tive por lá a paixão torturante das cartas. Naquela cidadezinha cravada em um cocuruto de serra, boca do sertão, para onde confluíam de toda a parte compradores de gado e tropeiros de mulas, jogava-se rijo e caro. E eu joguei rijo e caro. Joguei como um dementado. Quanta noite, entreverado àqueles boiadeiros e àqueles tropeiros em meio àquela gente abrutada, de botas altas e trabuco à cinta, mas que usava grandes anéis de brilhantes no dedo e trazia maços de dinheiro no cintão de couro, quanta noite, Deus meu, quanta apaixonada e vergonhosa noite não varei eu - um poeta! - com as cartas na mão, dentro de tascas enfumaçadas e malcheirosas, a topar paradas grossas nas bancas de nove e de primeira. E aquelas ardentes noites de jogatina, noites asperamente emocionais em que, num só lanço, apostava eu, às vezes, o ganho inteiro de uma demanda, aquelas ardentes noites findavam sempre por patuscadas sórdidas em casebres de chinas abomináveis. Aí, sob telheiros esburacados, eu, no meu aturdimento, os tropeiros e os boiadeiros no seu desperdício, ficávamos faustosamentre a cear latas de sardinhas portuguesas e a beber copázios de champagne Moet et Chandon (sacrilégio!) na companhia nauseante daquelas mulherinhas de estrada, analfabetas, que vestiam uns amarfanhados vestidos de babado e avivavam a cara com um hediondo encarnado de papel de seda vermelho. Onde andava, àquelas horas, o noviço do Carmo? Onde o filho católico de uma velha católica? Não sei. Sei apenas que vivi dois anos assim. Dois anos, brutais e materiais, que embotaram fundamente a minha sensibilidade. Não tinha mais outra aspiração na vida, outro sonho, a não ser a mesquinharia de ganhar dinheiro. Só dinheiro. Dinheiro às mancheias, dinheiro a rodo, dinheiro e, com o dinheiro, chafurdar-me deliciado na torpeza daquela vida solta. E tão materializado andava, tão longe de Cristo, tão vazio de cousas altas, que, no meu chafurdamento, se me afigurava como um pesadelo, cousa irreal, o ter tido a fraqueza de, outrora, em dias idos, haver entrado em uma igreja, ajoelhado devotamente diante de um altar, rezado, confessado, comungado. Como aquele passado se me exsurgia ridículo e vexador! Como eu havia sido pueril! Como eu havia sido carola! E me constrangia, e me sentia terrivelmente envergonhado e mesmo humilhado, só em pensar nessas (como dizia) asnices de minha vida. O mundo, para mim, naquela quadra, era exclusivamente um lugar de alegrias e de prazeres. Aquele mundo, de que ouvira falar tão gravemente, lugar transitório, lugar de sofrimento e de provação, através do qual, pela aceitação humilde e risonha, o homem atinge a um outro mundo, que é aquele mundo superior, alto, eterno, onde esplende a Beleza Perfeita, isso não tinha o menor significado para o meu coração esterilizado e tonto. Isso, para mim, naquela quadra, não passava de baboseira de uma religião de tristes. Sim, meu amigo, essa religião que conduz ao aprimoramento moral, às delicadezas de consciência, aos escrúpulos sutis, à elevação e ao regeneramento do caráter, religião que, arrancando-nos do lodo e da sordícia, nos dá o anseio alevantado da perfeição e nos propele grandiosamente para o Infinito, essa religião eu a cognominava pedantescamente - formigazinha arrogante e cego que eu era - a religião dos tristes, dos vencidos, dos fracassados, dos místicos e dos devotos.
E o mundo, bem se compreende o mundo, para a minha materialidade de então, não era aquele mundo de sofrimento e dor, sofrimento abençoado que depura e dor feliz que resgata, de que a religião falava. Não! Era, bem ao contrário, era isso sim, um mundo amorável de deleites e de encantamentos. E eu não queria outra felicidade, nem cobiçava outra ventura, senão a de atolar-me nesses deleites e nesses encantamentos. E tais deleites e tais encantamentos, oh, a miséria de um coração sem Deus! residiam para mim, naquele momento, em jogar nove com boiadeiros em tascas enfumaçadas e em beber champagne com chinas que botavam encarnado na cara. Lastimosa e risível natureza humana... Foi assim, contudo, foi assim, com o coração vazio, tão impuro, que afinal deixei Lages e tornei de novo para esta minha cidade de São Paulo. Tornei para a cidade a mais dura, a mais fria, a mais materialista do Brasil, mas, com tudo isso, a cidade mais ardorosamente enternecida desta minh’alma de tatuiano caipira, neto boêmio de bandeirantes aventureiros.