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Folia de Reis

 

Trata-se de uma festa patrocinada pela esperança, pelo diálogo solidário e por um desenho de futuro. Matérias que andam em falta em nossos dias.

Dos três Magos, segundo reza uma tradição, Gaspar seria de origem indiana. E, para abordar a cultura da paz, penso em Nova Déli, cidade rica em matizes e culturas.

Injusta e poluída em toda a parte, feroz e compassiva a cada esquina, ingênua e ardilosa: do hospital de passarinhos às ruas incrivelmente sujas, do raro perfume de incenso e especiaria à gama repulsiva de odores. Uma oferta quase infinita de templos atrai peregrinos de todos os quadrantes, os corpos seminus, pintados de branco, ou cobertos por trajes de cores vivas. Tudo em Déli impressiona e fascina, assusta e surpreende.

Conheço de cor as prateleiras de literatura indiana da livraria Bahrisons e evoco alguns conceitos do místico sufi Nizamudin, para quem não existem barreiras entre as religiões, apenas um desejo do outro e um alto grau de compaixão. Na tumba de Nizamudin cantam os peregrinos, todas as quintas no fim da tarde, e traduzem as formas de uma radiante beleza. Lembro de alguém recitando um antigo poema de Bulleh Shah: “Não me incluo entre santos, pecadores, / E já não sou feliz nem infeliz. / E não pertenço à água nem à terra / E não pertenço ao fogo nem ao ar.”

Versos que abrem portas e janelas. Uma ode ao encontro, na generosidade de quem se entrega sem meio-termo, com adesão: “Não sou o crente que vai à mesquita,/ Nem o que segue as vias da descrença. / Não ando limpo e tampouco ando sujo. / Não sou Moisés, nem sou o Faraó.”

Negar, ainda que momentaneamente, tudo o que somos significa não impor nossa visão a quem quer que seja. Negar-se para ouvir o outro. Como um gesto de cortesia, para não dizer de civilização, sinal de acolhida e abertura, através do diálogo, único remédio possível ao território do ódio, ao cerco de mágoas inarredáveis e aos muros de estéreis convicções. Desse remédio não devemos, não podemos, não queremos abrir mão. Volto aos Reis Magos, que saíram de partes extremas da Terra, que deixaram seus reinos em homenagem a uma criança, ou seja ao ainda-não, a uma potência ou janela virtual que dava para o futuro.

Ao término dos cantos daquele fim de tarde em Déli e começo da noite, pensei num dos maiores poetas do Oriente, Djalal Rumi, a um passo a mais, de uma profunda amizade e amor contundente:

“Sentados no palácio duas figuras, / são dois seres, uma alma, tu e eu. / Um canto radioso move os pássaros/ quando entramos no jardim, tu e eu!/ Os astros já não dançam, e contemplam/ a lua que formamos, tu e eu!/ Estranha maravilha estarmos juntos:/ estou no Iraque e estás no Khorassan”.

E como ainda é tempo, caro leitor, não importa se você tem ou não partido, se acredita ou não, se tem ou deixou de ter orientação religiosa, os meus sentidos votos de que possamos construir juntos um feliz 2016.  

O Globo, 06/01/2016