Parte significativa do Congresso Nacional vive uma onda de entropia e fundamentalismo. Tentou-se a redução da maioridade penal, a revogação do estatuto do desarmamento, onde se ouviram frases de hospício, como o aborto de “fetos com tendências criminosas”. Some-se a isso a iniciativa de pautas-bomba, ou mais propriamente pautas-kamikaze, contra o país, sufragadas por boa parte do PSDB, afetado de amnésia, ao perder a segunda e terceira consoantes da sigla, de braços dados com o DEM moribundo e o esquizofrênico PMDB, que age e se intitula como situação e oposição, ao mesmo tempo, segundo interesses imediatos, e sem qualquer constrangimento, como se não houvesse opinião púbica no país, a que se associam galhardamente os partidos teocráticos. A permanência do presidente da Câmara é um retrato eloquente do momento que vivemos.
Mas o país real existe e conta com uma riqueza mil vezes maior que a camada do pré-sal, mais ampla que as reservas cambiais, orçadas em 317 milhões de dólares, maior, bem maior que todas as commodities reunidas, como a cultura da soja e a extração do minério de ferro. Refiro-me ao patrimônio imaterial das 274 línguas praticadas no Brasil, por quase um milhão de índios, distribuídos em 305 etnias, segundo o censo de 2010. Essa realidade fundamental permanece, no entanto, invisível, como se fosse uma nuvem-fantasma, uma incógnita sem função, uma teimosa presença do passado, que põe freio ao agronegócio e sua insaciável expansão da fronteira agrícola.
É preciso tirar partido dessa riqueza cultural, assegurando o domínio do território em que se apoiam e constituem as múltiplas etnias. Pois língua, terra e cultura mostram-se indissociáveis e geram elevados índices na preservação dos recursos naturais, dentro de suas terras.
O artigo 231 da Constituição reconhece aos índios “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Na contramão, eis que ressurge a proposta de emenda constitucional 215, que transfere a competência da União na demarcação das terras indígenas para o Congresso Nacional. Trata-se de um risco sem precedentes, um perigoso retrocesso. Segundo a lei vigente, cabe à Funai, ao Ministério da Justiça e à Presidência da República a fixação das terras indígenas, política de Estado, atribuição inerente ao poder executivo, embora não tenha primado pelo brilhantismo nesses últimos anos. Como disse na semana passada o cacique Valdomiro Vergueiro Kaingang “o governo não está respeitando a terra onde enterramos nossos mortos, onde deixamos nossas cinzas”.
A utopia necessária da “terra sem males”, sonhada pelos índios virá do ciclo básico, nas matérias que contemplem a língua e a cultura indígena onde se insere a escola. O Brasil sairá mais forte, mais espesso e mais integrado, quando se decidir a escrever uma ode em defesa da pluralidade.