O Coronel: apogeu ou declínio
Mais do que época de afirmação e de domínio incontestado do coronel como chefe de homens, dono de decisões e senhor de terras, a fase mais recente da história social e política dos sertões nordestinos assistiu a sua superação, ao seu nítido declínio. O prestígio e a fama do coronel nos anos cinqüenta - que assumem novo ímpeto, quer pelas suas repercussões nas capitais e centros de decisão e pelo efeito catalisador que esses sucessos têm nas suas bases tradicionais de poder, quer pela aceitação e uso de novos meios de afirmação de domínio, caracteristicamente urbanos - são mais uma vitória daqueles chefes mais hábeis e perspicazes em conseguir utilizar, em seu próprio proveito, as armas destinadas a destruí-los. É o apogeu então obtido o resultado de quem conseguiu, por algum tempo, mantendo seguras as estruturas do feudalismo matuto em que tradicionalmente se baseou, mover-se à frente do processo de seu rompimento para assegurar permanência de comando: De quem capitaliza para si, ainda que efemeramente, o prestígio dos governos a invadir seus domínios, o poder da polícia, e até outras formas mais libertas de permeabilização social, de modernização econômica e de democratização, tais como a imprensa, o rádio, o crédito, o processo eleitoral. Rompendo-se a rotina de uma situação de poder que lhe permitia impor decisões, julgar causas e aplicar castigos, o coronel - chefe político, árbitro social e fonte de coerção - cede até com desvanecimento, às influências externas que, sem o diminuir, como que institucionalizam seu domínio nas figuras do prefeito, do juiz, do delegado, submetidos à sua discrição, e que promovem e alastram a sua fama. Não se apercebe logo o velho chefe que o Estado, oficializando o poder, como que diferencia o seu exercício, despersonaliza-lhe as decisões. Que, mesmo prestigiado amigo de governadores, deputado ou com filhos deputados, prefeito várias vezes, vai dependendo mais e mais tanto de governos como do eleitorado para um exercício de mando que lhe pertencia originariamente.
Ao alargar a influência sobre homens e regiões, o coronel perde aquele contato direto e pessoal com o seu mundo subordinado; ecoando nas capitais pelos jornais e pelas assembléias, multiplica o seu nome. Mas, ao utilizar-se de instrumentos de atuação e de manipulação social que não domina, perde o controle e a decisão sobre as variáveis de seu prestígio. E, quer arroteando segurança e permanência, ou, mais raramente, afetando prudência e evitando choques, se torna cada vez mais dependente, para ser forte, de forças que, se ele ainda influencia, nunca controla: dependente dos governos, das polícias, dos votos; presa de uma imagem sua facilmente transfigurada pela imprensa, ou nos comícios, já permitidos, a contragosto, aos adversários. É que esse apogeu moderno do coronel, se bem que construído sobre a base interna de seu domínio tradicional, é também conseguido de fora para dentro; fruto das novas forças que, brechando-lhe o sistema de equilíbrio e as estruturas de domínio, vão operar a sua reversão.
O perfil do chefe político e do árbitro social que é, nos sertões nordestinos, o coronel, adquire, assim, nessa situação de trânsito societário, contornos e dimensões peculiares. O coronel, se não é o único, é, por certo, um dos principais protagonistas de um processo de rachadura social, econômica e política, processo de penetração do moderno em estruturas sociais anquilosadas. E ele é sem dúvida, a sua maior vítima.
Sua atitude é predominantemente conservadora; às vezes de reação agressiva ao novo. No entanto, é o coronel, consciente ou inconscientemente, um veículo de mudanças. Vê-se levado a promovê-las como que para não perder a iniciativa social e para assegurar seu cetro paternalista de doador de coisas, de patrocinador de causas. Para manter o prestígio junto às cidades que domina, promove urbanização em detrimento de suas bases rurais; ou patrocina a abertura de estradas para as capitais, facilitando a penetração do elemento moderno perturbador de sua hegemonia. Para sobreviver como poder econômico em estrutura que se diversifica, de senhor de terras passa a comerciante, e até mesmo a empreendedor industrial, um tanto shumpeteriano em seu arrojo, falseando o seu status econômico original e a sua linhagem. Para alargar a base eleitoral - fonte de sua nova força, decorrente do poder estranho do Estado, mas que ele incorpora - abre escolas e fabrica eleitores, origem de um processo incipiente de politização que fatalmente lhe substituirá no mando. E chega mesmo ao ponto de, para conseguir manipular os escassos núcleos urbanos de opinião, que se formam, e para alargar a base geo-humana de sua influência, encomendar folhetos populares que lhe exaltem a glória; utilizar boletins de cabala política; patrocinar o aparecimento dos curiosamente servis jornais interioranos; ou apoiar iniciativas mais temerárias como a instalação de serviços de alto-falantes e de estações de rádio.
O coronel torna-se, nos últimos anos e sobretudo depois de 1945, figura de coalizão entre tempos e estruturas sociais. Herda o nome e a força da velha ordem semipatriarcal e semifeudal; mas, ao tentar sobreviver ao processo de mudanças que a reverte, como que as incorpora e as promove, prolongando a sua existência nos novos tempos. Essa ambigüidade resulta de sua luta para "sobreviver politicamente". Suas armas tradicionais se superam em efetividade. A força, quase despótica, é desafiada, de um lado, pela pressão da cidade, mais hábil e mais à vontade com os novos instrumentos de sociedade em processo de modernização; e, do outro lado, pela emergência de líderes locais. São esses líderes mais homens-do-povo, às vezes formados pelo coronel como seus prepostos distritais, e que agora sentem poder exigir-lhe recompensas, contestar-lhe as vontades; ou simplesmente surgindo com as novas formas de contato social, e como detentores de armas de influência cada vez mais estratégicas: o ponto comercial de beira de estrada ou o caminhão, elementos dessa penetração modernizadora de hábitos e de costumes; e demolidora da velha ordem.
O coronel, ao pretender manter, a todo custo, o poder político, trai a sua ordem; é instrumento dialético do próprio ocaso. Alguns, mais fechados, resistem como podem, em suas cidadelas, à investida do caminhão, das estradas, dos governos e dos bacharéis, dos médicos e das escolas; revelam uma certa teimosia ou rigidez social e, algum dia, caem com suas cidades-fazenda e pátios familiares. Alguns outros, os mais permeáveis, prolongam-se vivos enquanto se contaminam com a destruição e divulgam a sua ruína. Muito raros os que, lucidamente, se apercebem, não sem amargor ou ódio, da sua superação como líderes, e, resguardando ou mesmo ampliando para o comércio e a indústria o poder econômico, abdicam do político a filhos bacharéis ou letrados, mais receptivos, mais brandos e conciliadores no poder, e sem a arrogância superior do velho chefe. É essa tentativa de sucessão uma forma de compromisso com os novos tempos, não raro malsucedida, quando a própria sombra do senhor absoluto de outrora, não mais temida de seus inimigos, obscurece, perturba os passos do herdeiro político.
O declínio político do coronel quase sempre provoca esfacelamento de poder, atritos e lutas políticas mais acirradas. Com o tempo, aquela forma de supremacia sociopolítica se substitui por outra, mais sutil, menos ostensiva, na pessoa de um líder mais moço, formado nas cidades e mesmo com uma cultura universitária, quase sempre em regressão; ou representada por uma classe comercial e incipientemente empresarial, ativa e ávida de poder político; ou ainda, pela demagogia de certos "líderes populares" e pelo oportunismo político.
O modo como se operou o rompimento da velha estrutura coronelística, o caráter e a atuação pessoal do coronel ou dos coronéis, o tamanho e a importância das concentrações urbanas que se formam e sua proximidade das capitais condicionam uma ou outra dessas formas novas de substituição da liderança política.
(Coronel, Coronéis, 1965.)
Capitães da Areia e do Asfalto
O registro dos cinqüenta anos de Capitães da Areia nos traz de volta evocações da adolescência literária, do tempo de juvenil ledor.
Retomando-o, por raro prazer de ofício ao reviver sua temática atualíssima de infância e marginalidade social, é como se tudo voltasse.
No contato renovado do velho trapiche, na brancura enluarada do areal baiano, retemperei a emoção da inconformidade diante das iniqüidades sociais. Agradecemos a Jorge Amado o escritor do encanto de todas as gerações, da Bahia de todos os santos e de quase todos os pecados por espírito e consciência com a prosa madura de seus vinte e cinco anos, já então bem vividos de travessias e de travessuras.
Não nos iludamos com a maciez dessa prosa. Ela bem se forjou, na mistura baiana dos condimentos intelectuais e populares. Nos sobradões do Pelourinho, botecos das Sete Portas e sarapatéis da meia-noite em Água dos Meninos; na insubmissão literária da Academia dos Rebeldes e nas casas proibidas das "meninas" alegres; nos prelos democráticos do Diário da Bahia e iiii; nos candomblés de Procópio e Aninha, Camafeu e Menininha; no convívio igual dos trabalhadores do cacau em Sequeira do Espinho; nos saveiros viajando para Cachoeira e Porto Seguro.
É dessa prosa forte, cor e coração, dor e odor de povo, que nos vêm: O pais do carnaval, Cacau, Suor, Jubiabá, Mar morto e, enfim, Capitães de Areia. Anunciava-se e apurava-se o mestre.
O breviário marxista prevê a existência de duas nações em cada nação; duas culturas nacionais em cada cultura nacional. A cultura burguesa, tradicional, clerical e elitista, com seus elementos atuando de forma dominante/dominadora. E a cultura popular, democrática e socialista, cujos elementos - sementes ideológicas - provêm da classe trabalhadora e dominada.
No Brasil - para Sílvio Romero - essa dicotomia cultural equaciona-se de forma peculiar, refletindo as condições e contradições de nossa sociedade. Não chegaríamos, pela ausência de conflito revolucionário, a falar de uma simbiose perfeita. Sincretismo - fenômeno e solução bem ao jeito brasileiro - é, talvez, melhor explicação. Mas o fato é que a dualidade virou convivência assimilada e cultivada.
Jorge Amado seria a própria tese demonstrada. É tal qual Pedro Arcanjo, de Tenda dos milagres, conciliando fé e ideologia, religião e ceticismo, candomblé e militância política. Híbrido de Apolo e Dionísio.
Em Capitães da Areia, a duplicidade é manifesta.
O começo diz tudo.
O prólogo é síntese dialética de tema e texto, autor e obra. As "cartas à redação" já mostram a sociedade desigual, opondo ricos e pobres, opressores e oprimidos, consentidos e rejeitados. O painel introdutório, costurado com ironia, retrata o desprezo e a insensibilidade oficiais com a pobreza sem vez e voz. Acentua a cumplicidade autoprotetora dos poderosos, constantes no irmamento que reprime e pune a marginalidade humilhada.
No centro do quadro, o encontro do pequeno Raul, neto de comendador, e Pedro Bala, líder dos capitães de areia.
Espontânea empatia infanto-juvenil nasce entre o chefe da gangue e a "linda criança de onze anos". O autor se deixa revelar na consentida duplicidade existencial e literária. Não é gratuito o simbolismo de ser Raul "dos ginasianos mais aplicados do Colégio Antônio Vieira", afamado internato jesuíta de Salvador, tal qual fora, com a mesma idade, o próprio Jorge Amado.
O diálogo entre as crianças, reproduzido pela ingênua fidelidade de Raul, é ainda mais revelador:
- Ele disse que eu era um tolo e não sabia o que era brincar.
Eu respondi que tinha bicicleta e muito brinquedo. Ele riu e disse que tinha a rua e o cais. Fiquei gostando dele, parece desses meninos de cinema que fogem de casa para passar aventuras.
Pedro Bala e seus capitães de areia tinham a liberdade estrelada das noites, um mundo mais amplo e riqueza maior que a bicicleta do menino rico. Em seus quinze anos, dez deles vividos na orfandade e no aprendizado dos becos e ladeiras, Bala, livre e líder, era só superioridade.
Essa sensação contrafeita de segurança e independência, o amadurecimento precipitado pela ânsia de sobreviver, a consciência narcisista de donos de si mesmos, somam-se ao sentimento de revolta intransitiva e à natural agressividade adolescente, para formar o perfil dos capitães de areia.
Engana-se quem imagina haver completa satisfação nessa condição marginal. No íntimo, sobrepondo-se aos vícios e contravenções, persiste a ingenuidade doce, a inocência mansa do ser criança. E, no texto, a prova comovente é a alegria natural com que os "terríveis delinqüentes" se reencontram nas brincadeiras do carrossel de Sem-Pernas e Volta-Seca.
À noite, entretanto, na solidão cansada do trapiche, virão, como sempre, as cicatrizes, os medos, os vazios. E também os desejos. Todos, certamente, iguais aos sonhos simples do Sem-Pernas.
E Jorge Amado nos conta:
"O que o Sem-Pernas quer mesmo é felicidade, alegria, fugir de toda aquela miséria que os cerca e estrangula. Há, é verdade, a grande liberdade das ruas. Mas há, também, o abandono de qualquer carinho, a falta de todas as palavras boas. Ele não quer o refúgio confuso do misticismo, como o anêmico Pirulito. Quer coisa imediata, que ponha seu rosto sorridente e alegre. Que o livre também daquela angústia, daquela vontade de chorar nas noites de inverno. Quer alegria, mão que acaricie, alguém que o faço esquecer o defeito físico e os muitos anos que viveu sozinho nas ruas da cidade, hostilizado pelos passantes, empurrado pelos guardas, surrado pelos moleques maiores." A confidência solitária de um é o apelo mudo e dramático de todos. Dos capitães de areia ou do asfalto; dos "filhinhos pobres de Omolu" e dos pixotes, trombadinhas e pivetes. Daqueles que, violentados na infância e juventude, se agrupam hoje, tristemente, sob a rubrica técnica/tecnocrática de "problemática do menor abandonado". Personagens da mesma tragédia urbana.
E na confidência e no apelo, a denúncia implacável.
Denúncia contra o despreparo oficial que consente na eternização do problema. Censura explícita à sociedade, que tem preferido ignorar a questão social do menor brasileiro, lembrando-se dela apenas quando se assusta com o noticiário de assaltos, fugas e revoltas nos internatos institucionais - versões modernizadas, e nem por isso mais sensíveis, do cínico e opressivo reformatório do livro. É nessas horas de susto que surgem sempre os truculentos de plantão, exigindo corretivos policialescos.
E as causas nada têm de glamurosas e cinematográficas, como inocentemente imaginou o pequeno Raul. São muito mais fundas, dolorosas e persistentes. Transcendem até mesmo a reação de Jorge Amado. A arte aquém da vida.
Onde estão as causas primeiras e verdadeiras desse drama continuado?
De onde vêm essas crianças? Os Pedro-Balas, Gatos, Pirulitos e Sem-Pernas que encontramos nas ruas da cidade?
Existem, em nosso país, 55 milhões de menores de 0 a l7 anos e mais de 60% - 32 milhões - provêm de famílias com renda mensal igual ou inferior a dois salários mínimos. São as famílias de baixa renda, que não dispõem de recursos suficientes para sobrevivência digna, de quase nula participação no mercado de consumo de bens materiais e culturais e de acesso precário aos serviços de saúde, educação, habitação, lazer.
Esses 35 milhões de andarilhos da miséria, aos quais as estatísticas negam até mesmo o nome de crianças, são as vítimas do abandono e da desesperança; do analfabetismo e da desnutrição que reduz peso, altura e perímetro cefálico, comprometendo-lhes, irreversivelmente, o desenvolvimento intelectual. O drama é amplo. Não se limita ao simbólico trapiche do cais de Salvador. Desdobra-se em múltiplos planos e seqüências da realidade brasileira.
- Mais de 60% de nossas crianças já começam a ficar desnutridas e, portanto, física e mentalmente vulneradas, no próprio ventre materno. A inferioridade orgânica e intelectual precede e condiciona a social.
- A mortalidade infantil no país ainda está em torno de cem mortos para cada grupo de mil nascidos vivos, chegando a ultrapassar duzentos por mil em várias regiões do Norte e Nordeste.
- Mal de Chagas, tracoma, tuberculose, tétano, sarampo e poliomielite dizimam consideráveis contingentes de crianças. Não têm a brandura solidária de Omulu, a deusa da bexiga, que reduzira os efeitos da doença para não matar "seus filhinhos pobres", desprotegidos de vacina.
- Mais de 7 milhões de crianças de 7 a 14 anos estão fora da escola. Das que ingressam no sistema regular de ensino apenas 20% chegam à 4a série do 1o grau, 47% são logo reprovadas na primeira série e muitas abandonam a escola e regridem ao analfabetismo. A repetência e evasão, quando não decorrem do comprometimento mental causado pela desnutrição, são provocadas pela necessidade de sobrevivência familiar que obriga a criança, com menos de 10 anos, a procurar ganho e ocupação.
- João José, o Professor, respeitado mentor intelectual dos capitães de areia, "só estivera na escola ano e meio".
- Temos cerca de 12 milhões de excepcionais - deficientes mentais e/ou físicos - dos quais 80% são menores. Nove milhões de Sem-Pernas e Joões Grandes.
- Pode-se mencionar, também, a tragédia das crianças dos seringais acreanos e amazonenses que, com 5 anos, já laceradas pela lepra e afastadas da vida comunitária, esmolam desamparadas pelos caminhos e trilhas da região.
Aprofundando a questão, defrontamo-nos, por exemplo, com a dolorosa situação das crianças da zona canavieira, em Pernambuco, minuciosamente estudada, na década de 70, pelo Professor Nélson Chaves, cientista mais que respeitado internacionalmente. Ele nos mostra como funciona o círculo vicioso da desnutrição. As mulheres da região - que têm hoje uma estatura média de l,50 m, praticamente a mesma dos pigmeus africanos - sofrem de hipoplasia mamária (deficiência grandular provocada pela fome) e não produzem quantidade normal de leite. Assim, subnutrida, não pode alimentar adequadamente o filho recém-nascido. E este, se consegue sobreviver, vai crescer física e mentalmente inferiorizado, sem condições de gerar filhos sadios. É de Nélson Chaves o alerta de que, permanecendo tais condições de fome endêmica, subalimentação e miséria absoluta, que não são exclusivas de certo espaço pernambucano, teremos, em futuro próximo, uma geração brasileira de nanicos, anêmicos, raquíticos e debilitados mentais.
Já se pode, dessa forma e com tais informações, começar a perceber de onde vêm e como surgem as crianças abandonadas - versões não literárias dos capitães de areia - que erram pelas ruas, assustando a insensibilidade alienada da sociedade estabelecida.
Elas vêm da Zona da Mata pernambucana e dos seringais da Amazônia. Vêm das maltratadas regiões do Norte, Nordeste e do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Vêm evadidas das escolas. Dos escuros e miseráveis guetos urbanos. Indesejadas, escorraçadas, surgem de todos os lugares, gritando a sua trágica condição. São o produto final e doloroso de uma omissão generalizada e acumulada. O resultado cruel de uma criminosa indiferença social.
Capitães de areia faz cinqüenta anos. Muitas análises asseguram que as causas verdadeiras do problema do menor se encontram, paradoxalmente, na convivência insólita do desenvolvimento e subdesenvolvimento. A chamada teratologia do progresso; o choque súbito do desenvolvimento acelerado e não-planejado.
Nas origens da questão, há fatores típicos de países vivendo a ânsia do desenvolvimento, como industrialização, urbanização desmedida, êxodo rural e desequilíbrio do sistema produtivo.
Convivem com variáveis próprias de países subdesenvolvidos: precária infra-estrutura médico-sanitária, analfabetismo e evasão escolar, explosão demográfica, baixa qualificação de mão-de-obra, renda per capita insuficiente, pobreza, miséria.
Todos esses fatores influem, em maior ou menor grau, no dimensionamento sócio-econômico do problema.
As migrações rurais e o crescimento demográfico são conhecidos exemplos brasileiros.
Conseqüência da urbanização crescente e desordenada e da incapacidade produtiva nas regiões de origem, onde subsiste uma estrutura fundiária injusta e anacrônica, as migrações rurais, nos eixos Norte-Sul, interior-metrópole, ampliam desequilíbrios sociais e realimentam a questão do menor carente.
As cidades - meta e mito da ilusão migratória - não têm condição de absorver a diáspora rural. Tornam-se impotentes ante a demanda crescente de saneamento, educação e habitação do vasto cinturão de pobreza, instalado em sua periferia, sob a forma subumana de favelas, mocambos e invasões.
Já o crescimento demográfico descomedido pode assumir proporções catastróficas. O país conviveu, na década passada, com uma taxa de 2,48 por ano, ou seja, um incremento da natalidade de 33%, de 1970 a 1980, resultado incompatível com o padrão médio das nações adiantadas. O pior é que essa natalidade é inversamente proporcional à renda familiar. Nascem muito mais crianças nas classes desfavorecidas do que nos estratos economicamente privilegiados.
São os estigmatizados pela miséria, desagregadora da família e que sujeita as crianças à rejeição, à marginalidade.
Essa a raiz profunda do problema do menor, qualquer que seja seu batismo adjetivo: carente, abandonado, marginalizado, infrator, delinqüente, capitães de areia ou do asfalto.
A pergunta que se faz é até quando vai perdurar tal situação de desamor e espoliação.
Afinal, é cômodo culpar governos, mesmo quando, solidários, esforçados e às vezes confusos em seus bons propósitos, tentam remediar a questão, herdada e multiplicada por gerações.
Mas culpar governos; transferir remorsos e responsabilidade às vezes serve apenas para arejar consciências inquietas, como ensinava Machado de Assis. A solução, porém, não passa por aí: pela passividade contemplativa ou pela caridade isolada e autocompensatória.
Voltemos ao livro para lembrar o diálogo ressentido entre Pedro Bala e Sem-Pernas, numa igreja da Piedade, onde reencontram o místico Pirulito, compensando-se com fervor religioso, a ensinar catecismo aos meninos pobres. Quando Sem-Pernas, de dentro de sua desesperança afirma, que "Bondade não basta. Só o ódio...", Pedro Bala, já com o gosto e o jeito revolucionários nascentes, retruca: "Nem o ódio, nem a bondade. Só a luta."
Também não é por aí que passa a solução do problema do menor; ou de qualquer drama social. Não é pelo radical ardor do combate, nem pelo confronto de classes que encontraremos o remédio definitivo e a cura desejada. A questão ultrapassa ideologias e proselitismos. Vai além de filosofias e doutrinas.
A solução passa pelo íntimo consciente de cada um e se reflete na psicologia do comportamento social. Ela está na mudança coletiva de atitudes e sentimentos. Na troca da indiferença inerte pela participação; da insensibilidade pela mobilização construtiva. Ela se encontra na certeza de que podemos mudar. A começar de nós mesmos.
Capitães de areia faz cinqüenta anos. A lira é triste, pois o drama permanece. De nós depende o futuro.
Que Capitães de areia faça sessenta, setenta, cem anos e que a lembrança seja apenas literária - a riqueza da obra - e não a dolorosa persistência do tema social.
De nós depende não permitir que o canto continue elegia. Vire canto de redenção, seja como a Canção Amiga, de Drummond.
Acorde os homens e adormeça as crianças, na paz de um mundo justo e igual. Com a bênção benfazeja de Jorge Amado, Obá da Bahia.
(Intenção e gesto, 1989.)