O MAR
Logo nos primeiros meses de estadia em Itaporanga, antes mesmo de ter começado a fazer amizade com o Vaza-Barris, fui ver o mar... e isso em consequência de uma notícia que abalou a vila. Um verdadeiro estrupício. Os meninos da escola onde eu ainda não ia, passavam excitados, falando alto. Gente, ouvindo o alvoroço, perguntava: “Que foi?”
Meu pai chegou em casa dizendo: “Uma baleia deu na costa”. Numa praia perto, a do Mosqueiro, entre Itaporanga e São Cristóvão, uma baleia “deste tamanho”. Vinha vindo gente até de Aracaju para ver. Organizou-se excursão. Itaporanga toda ia ver a baleia. Lá tocamos, os meninos pequenos em maçaneta de sela, os maiores nas garupas, uma ninhada de família pobre acomodada em caçuás, dois de cada lado, como galinhas. Meu pai e amigos com os filhos fomos dos primeiros a partir. A terra, na viagem, foi mudando. Já não era como a de Itaporanga; só areia branca e fofa; os pés dos cavalos enterrando-se nela; canavial não se via, só coqueiros. Paramos numa casa para deixar os cavalos; tocamos a pé. Aí foi caminhar muito. A baleia estava longe. Íamos uns quinze meninos. De repente, um estrondo inenarrável, uma explosão inconcebível me fez estremecer.
- É o mar! - exclamou meu pai, acolhendo-me nos braços, pois eu recuara para ele. A que distância estaríamos? Não o poderia precisar. O mar, que eu só havia visto pintado, a sua revelação inicial foi pelos ouvidos: um troo formidável, um medonho estrondejo de mil tiros de canhão fundidos num só, disparados ao mesmo tempo. Dir-se-ia vir do oco da terra. Meu pai e outros homens, todos ainda jovens, dispararam para a frente levando os meninos. Ouvimos então choro; paramos. Um pequenino, com os olhos pulando, segurava nas calças do pai, dizendo: “Não! Não!” Chegamos para perto dele; catarro escorria-lhe do nariz, e, misturado às lágrimas, entrava-lhe pela boca. Todos começaram a agradá-lo, a convencê-lo, a ajudá-lo a superar aquele choque, a arrastá-lo mesmo. Não deu resultado; teve de ser carregado esperneando e esgoelando-se como um bacorinho. Nós já estávamos molhando os pés junto da baleia. Que bicho! Passeavam em cima, davam-nos a mão lá de cima, os meninos escorregavam, quem dava a mão escorregava com a gente. Iam abrir a baleia a machado no dia seguinte antes que começasse a feder e os urubus a chegar.
O mar, o Atlântico, ali estava, todo unido e plano, o mar, aquele camaradão, diante de mim. O olhar ia por ele sem parar até lá longe. O sol danava-se em cima da gente querendo comer pescoço e peito nu de menino. Os homens tiravam a roupa para tomar banho, entravam, voltavam logo, sacudindo-se. O mar unido, o mar plano!
Na conferência que marcou o início da minha carreira literária (A chave de Salomão), quando falei do mar, a impressão que salientei foi essa da unidade. Não me recordo se a lembrança estaria em mim ao escrever a conferência. Devia estar.
Nenhum daqueles meninos tinha visto ainda o mar; o mar; todos queriam provar a água. Faziam caretas golfando-a fora. Tomamos “banho salgado” (em Sergipe não se diz banho de mar), os olhos ficaram ardendo; os pais seguravam os filhos; fizemos barulho dentro da água, mas o menino que tinha medo não tomou parte nos brinquedos. Ficou todo o tempo sozinho, sentado na areia, de costas para a água, virando-se uma vez ou outra de esgueira, um instante, para retirar logo os olhos da superfície imensa que nos chamava para as viagens, para o mundo.
Apanhamos entãs. Dava-se este nome que não encontro no dicionário, pelo menos no que tenho aqui à mão, o Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa, entãs, a conchas cor-de-rosa, madrepérola, nacaradas, de várias formas. Meu pai trouxe um búzio que lhe deram na casa em que repousamos, para a gente encostar ao ouvido e ouvir o mar dentro dele.
Que histórias Iaiá não contou depois a propósito dessa baleia! Iaiá era contadeira de histórias à criançada, que ao escurecer, tendo levado banho, depois do brinquedo, vinha chegando para a nossa calçada. Os cabelos fouveiros amarrados por uma fita, os olhos muito abertos onde a sensibilidade tremia, olhando para todos e para ninguém, Iaiá começava a contar. Fora eu, santo de casa, toda a pequenada sentava-se por ali em torno dela. Onde tinha ido ela achar tanta história de trancoso, tanto conto da carochinha? Saíam-lhe da boca, um atrás de outro, príncipes vestidos de ouro, cavaleiros montados em dragão que botava fogo pelo nariz, bicho falando, velha que come menino, a passarem pelos olhos da garotada, presos aos dela, uns babando. Que façanhas, sortilégios e proezas de mouras-tortas, de fadas e de velhinhas feiticeiras, de pajens encantados, de corcéis, de palácios e de castelos, não trazia Iaiá para aquela meninada! Vi muito molequinho chorar com as histórias, sobretudo nas em que ela cantava como a do “Jardineiro de meu pai”; cantava de cortar coração. Vi-a, lembro-me tanto, consolando os cabrochinhas, explicando que era só história, os cabrochinhas chorando, e ela a contagiar-se das lágrimas que provocava, querendo chorar também. A verdade é que se esquecia de que estava inventando; ficava com medo dos próprios fantasmas, figuras e monstros que criava. Como todo verdadeiro artista, acabava acreditando nas próprias criações. Se tivesse vivido em outro meio teria sido uma atriz.
Que espanto, o meu, quando três anos depois, esquecida na sua imaginação da origem desse cetáceo que tinha dado na praia ali perto, ouvi-a contar a história começando assim: “Foi um dia lá longe, numa terra muito longe em que o Rei era assim e assim, a Rainha assim e assim... foi um dia uma baleia, um bicho que come menino...” E lá vinham a história de Jonas e uma baleia mesmo ruim, com interpolações medonhas que faziam a molecada esfregar os olhos, de assombro. A baleia afinal era desencantada, aparecia em forma de uma moça loura muito bonita, penteando os cabelos na janela de um castelo, e por aí continuava ela até que Bernarda implacável, obedecendo à ordem “de botar menino para dentro”, chegava, e a turma era obrigada a dispersar-se.
À volta da excursão, alguém tendo afirmado que baleia não era peixe, provocou uma risada geral. Travou-se discussão. ”Baleia não é peixe! Ora essa! Não vive no mar? Se baleia não é peixe, que é?” “Cetáceo!” “Cetáceo? Mas por que cetáceo não é peixe?” Todo o tempo que durou a viagem de retorno, o problema foi debatido. Não teve solução.
Teria o menino medroso do mar lido nas ondas um destino de náufrago... por uma dessas iluminações premonitórias de que nos falam tantos casos e exemplos da metapsíquica moderna? Essa ideia me veio depois, muito mais tarde, num tempo em que a curiosidade pelos problemas relativos às atividades supermentais do espírito me entreteve... experiências, transes de presciência inexplicáveis, comunicações misteriosas relampejando em clarões o futuro, estados de extralucidez em tantas modalidades relatadas por autores especialistas, ajuntados aos que a versão popular propala. Lembrei-me do menino em face do oceano. Ter-lhe-ia acontecido depois, no curso da existência, alguma coisa no mar ou por causa do mar? Acaso nem a própria criança se recorde do que me recordava eu. Talvez nada lhe tenha restado na memória desta cena. Fui no entanto testemunha de outro caso, de uma manifestação de medo na qual a realidade confirmou o presságio.
Foi muitos anos depois. Entre Itabaianinha e Timbó, onde íamos tomar o trem para a Bahia, apeei-me na propriedade em que habitualmente nos hospedávamos. O dono dessas terras morrera. O filho, estudante de medicina, que eu conhecera na Bahia, abandonara os estudos para dedicar-se de todo à vida de fazenda. A tarde ia caindo na chapada nítida. O terreno, aí, reluz ao sol como uma miragem. De noite, quando há lua, fica branco como um cemitério. Os arbustos secos, esparsos na transparência da luz, lembram figuras e representações funerárias. A imagem impõe-se ainda porque certos cômoros e elevações arredondadas na superfície escalvada tomam um aspecto de carneiros sepulcrais, ou de um ossuário imenso. Do céu metálico pende no descampado, como uma lâmpada, a lua. O longe não se esfuma e amortece. O horizonte define-se no fim da vista, exato, numa linha rasa. Nesse dia, a tarde, ao cair, emendara-se com o luar. Soltamos os cavalos. Tomamos um vinho de jenipapo e, desprezando as redes armadas no alpendre, estiramo-nos fora, nas mantas, gozando o cheiro do pasto espalhado no luar como perfume num lenço de cambraia. Os agregados juntaram-se a nós. Um cavaquinho começou a repenicar, pespontando a minha conversa com Jerominho, meu hospedeiro. João Calixto, meu pajem, cabra prosista, quis “garrar” conversa com os homens, mas o cavaquinho não fez conta da palavra dele. “Canta, Silvino”, disse Jerominho a um agregado bem jovem, de agradável aparência, que estava no grupo. Silvino cantou uma toada boa, demorada, chorosa. O silêncio tornou-se maior. Uma estrela cadente descreveu longa curva por cima de nós. “Caiu em São Cristóvão!” exclamou João Calixto. “Por que São Cristóvão?” perguntei. “Estrela só cai para as bandas do mar; ora, mar por ali onde ela foi, só São Cristóvão”. Rimos.
De repente começamos a distinguir na linha extrema do pasto cavaleiros que passavam um atrás de outro com grandes chapéus de palha. Eram os morféticos (explicou Jerominho) que voltavam de pedir esmolas, o que faziam uma vez ou duas por semana. “Vivem por aqui?” “Sim, no agreste. Meu pai não deixava... Eu deixo; não incomodam; plantam sua mandioca, ninguém chega perto; aliás [e aí falava o ex-estudante de medicina] não pega; só com contato prolongado; o mais é superstição”.
Passavam devagar, em fila, seis ou sete. Demoravam na vista como se não acabassem de passar. Ouvimos então uma espécie de trilo de garganta, um riso histérico inesperado, estranho, que rasgou a serenidade do momento. Era Silvino, o rapaz que cantara. Disparou para o puxado de onde tinha vindo com os demais agregados. “É a segunda vez que tem tal manifestação”, comentou Jerominho para o meu espanto. “Superstição, pura superstição! A moléstia não é transmissível pelo ar e em muitos casos tem cura”. Citou fatos e autores. Ouvindo-o, concordando com o que dizia, não me libertei, contudo do mal-estar que me produziu o fato.
Parti de madrugada para alcançar o trem. Paramos, como sempre fazíamos, para almoçar no Barracão, lugarejo onde havia um hotelzinho, casa de telha-vã atarracada no barro, com uma porta e uma janela, em que já dormira numa das viagens e na qual ouvi um diálogo que me fez rir. Nessa ocasião a que me refiro, chegáramos ao escurecer. Atraído pelo tropear dos cavalos, o dono assomou à porta. Meu pai, que já ali tinha pernoitado, disse ao apear-se: “Prepare duas camas”. E gracejou: “Tem muita pulga, Severo?” O tabaréu, alto, seco, respondeu com a maior seriedade: “Qual o quê, Coroné... percevejo não deixa...” Eu não sabia que percevejo comia pulgas, nunca soube e nunca perguntei. Mas valia a pena, concluí para mim, passar a noite no hotel do Barracão só para ouvir um dito destes. Meu pai e eu rebentamos numa risada gostosa que deve ter ficado dentro de nós, pois o sono foi bom e acordamos alegres.
Anos depois, já deputado federal, vindo da Bahia, detive-me de novo na fazenda de Jerominho, uma noite, cansado de viagem puxada. À partida, ao despedir-me, lembrei-me subitamente do rapaz que se assombrara, que teve aquela crise nervosa quando viu passarem em frente de nós, a distância, os sombrios cavaleiros, no descampado luarento. Recordei-me do fato mas não do nome do rapaz, e perguntei: “Aquele seu agregado que cantou e teve um ataque de nervos quando viu os leprosos, na última vez que passei, não apareceu agora...” “Silvino?” – perguntou o dono da fazenda. Baixou a cabeça e depois de um silêncio: – “Já não está mais aqui...” Fiz uma interrogação com os olhos. Jerominho estendeu o gesto e respondeu com a voz triste: “No agreste...” - “No agreste... como os...? Oh, diabo!” - exclamei. - “Então aquilo era um presságio, um pressentimento horrível?”
Contou-me Jerominho como, tempos depois daquela reunião, Silvino aparecera com os sinais iniludíveis da moléstia, rosto intumescido, dedos ficando cor-de-rosa. Os agregados afastavam-se dele. Foi para Itabaianinha, andou pelo Lagarto, pelo Geru... Todo o mundo fugia-lhe da presença. Pegou os trastes, foi-se juntar aos outros. “Oh, meu Deus!” - sussurrei. Jerominho continuou: “De vez em quando mando botar à beira da estrada dinheiro para ele. Ninguém quer ir entregar. Gritam de longe.” - “Como na Idade Média...” - comentei. - “Tal e qual!” - “Mas pode haver tais pressentimentos?” - ainda perguntei. Jerominho deu explicações científicas de que não me recordo.
(História da minha infância, 1954.)
CHEGADA AO RECIFE
O ano era 1905. Cheguei a tempo da matrícula. Fim de março, começo de abril, não posso precisar. Uma certeza tenho. Chovia. Porque, com a intenção de olhar de longe Olinda (Oh, linda posição para uma cidade...), subi ao tombadilho para não perder a vista famosa. Engravatado, deixei o camarote, gingando com o Jacuípe da Companhia Pernambucana, que lutava desesperadamente com as ondas brabas do Lamarão. Não guardo outra visão que esta de chuva caindo. Atracação, desembarque, cais, Lingueta, Capibaribe... Tudo se oblitera num fundo, de que, aliás, nada desejo arrancar. Certo eu poderia, a propósito da chegada ao Recife, alinhar períodos e períodos, compor mesmo capítulos de reminiscências históricas e evocações poéticas, mas mentiria se falasse de João Fernandes Vieira, em Guerra dos Mascates, em Nunes Machado, em Pedro Ivo, de Maciel Pinheiro, de “À vista do Recife”, de Tobias Barreto, de Castro Alves. Estaria fazendo literatura... da pior, da convencional, da que não devo fazer. Nada disso me veio. Nenhuma das imagens que esses nomes sugerem existia ainda em meu espírito, virgem de história do Brasil. Tobias Barreto, só de nome conhecia. Exagero. Já devia ter visto no Almanaque de Sergipe ou ouvido recitar, na Estância, ou em Aracaju, o “Beija-Flor”, que eu ia depois, quando me interessei por poesia, saber de cor, para prazer próprio e para demonstrar aos parnasianos do Rio o que era poesia romântica na sua melhor expressão no Brasil.
Uma imagem risca-me a memória e se projeta para a pena: uma tabuleta - Hotel de França. Mas ter-me-ia ficado perdida na chuva da hora do desembarque se o preto que carregava a minha mala na cabeça, e que ia na minha frente, não me tivesse dito: “O senhor entre aqui no hotel até a chuva abrandar”. Entrei... e este momento tomou importância extraordinária por sua repercussão psicológica, por sua sobrevivência e recorrência no meu espírito. Entrei no hotel. Um gato escapuliu da sala deserta. Do interior vinha uma voz de mulher falando francês. Achei-me, pela primeira vez, diante de uma coisa que eu nunca tinha visto: enormes espelhos de que só tinha conhecimento pelas descrições de romances. No que estava na frente, meu olhar começou a navegar como num mar siberiano, numa cinza líquida carregada de mistério. Em Sergipe, todos os espelhos do Estado, do litoral ao sertão, de São Cristóvão e Estância, cidades velhas, a Aracaju, cidade nova, colados um ao outro, não dariam um só do tamanho dos que vi no Recife nessa primeira hora. Eu havia estado dois anos na Bahia, mas aí só vivera em república, só frequentara casas de professores, jamais residências de luxo.
Recife e espelhos... eis a primeira imagem. A dona do hotel, a quem depois tanto conheci, veio de dentro e disse: “Bom dia, senhorrr!” Escancarou a porta por onde eu entrara e a outra. O salão clareou-se. A luz derramou-se nos espelhos. Vi-me não só de frente como de lado, multiplicado e devolvido a mim mesmo do fundo daqueles lagos luminosos. Então tive a grande surpresa... A mulher retirou-se de novo. Eu não tirava os olhos de mim mesmo.
Pela primeira vez me via de corpo inteiro. Até então só me tinha olhado em espelho pequeno, de parede ou pequeníssimo, de bolso, reproduzindo só rosto, gravata, pescoço. Jamais assim... todo, paletó, calças, sapatos. Tive um choque. Aí é que tomei conhecimento da minha fealdade. Experimentei uma espécie de recuo diante de mim próprio. Eu era “aquilo”?! Mentiria se especificasse impressões ou nuanças de sentimento. Do que recordo é do estremeção recebido. Esse choque iria repetir-se a vida toda. Era ver-me em espelho grande, de frente, e sobretudo de perfil, era ser abalado por uma sensação brusca, quase diria de susto, diante de mim mesmo, ao me ver tal qual “a natureza em mim próprio me resolvia”. Toda vez que ia experimentar roupa em alfaiate, onde os espelhos conjugados nos mostram de frente, de lado e de costas, essa sensação me assaltava. Sensação de mal-estar, quase diria de inimizade com o meu físico. A cabeça, grossa e pesada, se me enterrava nos ombros, formando com o torso empinado um ângulo agudo. A queixada aproava num arremesso antipático. Depois, sempre, na casa da Viscondessa do Livramento (avó de Rosa e Silva Júnior), onde os havia tão grandes como os do hotel, na casa de João Elísio de Castro Fonseca, senador estadual, na de Genaro Guimarães, professor da Faculdade, na do velho Gibson, onde me casei, ao me descobrir todo, ao passar em frente desses grandes espelhos da Europa, acometia-me o espanto de me ver e de me encontrar tal qual me havia feito a natureza. Os alfaiates que me serviram, o Almeida Rabelo da Rua do Ouvidor, os da França, o de Londres, da Itália, da Suíça, e nos últimos anos o Brum da Rua dos Ourives, sorriam sempre simpaticamente, com benevolência, abanando a cabeça com denegações compassivas diante da minha exclamação a respeito de mim mesmo. “Ô camarada feio!...” Devo notar que a essa sensação... de mal-estar, de antipatia, de constatação, não se juntava desgosto, constrangimento ou tristeza propriamente dita. Era um fato... Nunca a realidade, por pior que fosse, me foi ensejo a lamentação inútil. O que eu experimentava era apenas a estocada fina que me atravessava coração, onde ficava pungindo. Pungência, é a expressão que define o que eu sentia. E por paradoxal que pareça, é sensação parecida com a que me produz a beleza subitamente revelada. Um rosto de mulher cheio de amor, um descortinar de paisagem, um pedaço de música em que Beethoven abre um rasgo inesperado de bondade na face da vida, sacode-me o peito e perfura-me o coração com a intensidade de uma facada penetrante. “Como a beleza punge!” escrevi num dos meus poemas.
Minha reação em presença da minha fealdade era a mesma que me despertava a de outros. Ver gente feia me dói. Sinto-me profundamente em desacordo com certas caras, certos jeitos, certas maneiras de caminhar. Tenho que lutar para conservar em relação à gente feia a minha bondade. Tenho que fazer apelo a todos os recursos da cultura para não ser descaridoso dentro de mim, sobretudo com mulher ou criança feia. Por isso não gosto de me olhar em espelho. Tenho medo de me indispor comigo mesmo.
Ao me reconhecer como era, sentia ao mesmo tempo no meu arcabouço inóspito respirar um sopro intenso de vida. Tive a revelação do efeito em outras pessoas dessa força íntima, que palpitava em mim, anos depois desse primeiro encontro com os espelhos grandes de Pernambuco, em 1912, na Holanda, quando ouvi Graça Aranha, então nosso ministro em Haia, exclamar diante das provas de uma fotografia minha que lhe fui mostrar pedindo conselho sobre qual escolher: “Oh, quanta vida! Até faz medo!” De fato, na crueza da placa revelada a minha fisionomia pulava como propulsada por uma violência que os olhos, queimando o papel mal podiam conter.
- “Vambora!” disse o preto, botando a cabeça dentro do salão.
- “Vamos!”
A rala rede da chuva, que se rarefazia, apanhou-me nos seus fios moles. Não parava na sua morrinha. O negro ia na frente, com a mala na cabeça, patinhando. Atravessei uma ponte...
(Minha formação no Recife, 1955.)
AS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS E O MEIO SOCIAL NO BRASIL
Discurso proferido na Câmara dos Deputados
[...]
A “Conciliação” é obra política do Imperador, e nunca o “pensamento augusto” influiu mais no sentido de apressar a marcha das ideias liberais donde haveria de sair mais tarde a preocupação republicana. Propiciando a chegada dos liberais ao poder, o Imperador empurrava o país na direção que ele queria seguir e pode dizer-se que iniciava uma política de suicídio dinástico sem compreender talvez que o trono assentava na aristocracia territorial e que o enfraquecimento desta traria como consequência o enfraquecimento do trono.
Sem aptidão para criar uma classe militar forte para substituir aquela ou porque lhe repugnasse ao caráter pacífico e burguês ou porque se temesse da sua possível infidelidade futura, tendo na memória o exemplo do 7 de abril, o certo é que Pedro II começou daí a sacrificar ao seu temperamento liberal os próprios fundamentos da sua coroa.
É 1862, contudo, a época do esplendor da monarquia. O Brasil é então um bloco harmônico. Aquela situação de equilíbrio a que Salles Torres Homem já conciliado se referia com tanta precisão, exprime a plenitude da maré cheia. Tinha começado, entretanto, a vazante conservadora, e ia pronunciar-se a forte enchente democrática. Um acontecimento inesperado deteve-a, porém. Foi a guerra do Paraguai. Não obstante, a eleição por círculos trouxe uma quase unanimidade liberal. E pode dizer-se que de 1862 começou o domínio liberal.
É o instante em que se podem estudar estas belas figuras que de um partido e de outro fulgentearam na monarquia. Não será exagero afirmar que umas e outras no que dizia com as realidades concretas do país realizaram uma simples ação decorativa. Ilustrados nos publicistas europeus, versando temas que não tinham relação com o meio, os mais brilhantes estadistas não eram por certo os mais úteis. O seu trabalho político consistia em bordar sobre os assuntos do dia - empréstimos externos, reformas da legislação criminal ou civil, direito orçamentário, questões partidárias e eleitorais, grandes e belos discursos que poderiam figurar pelos assuntos nos Anais parlamentares da França e da Inglaterra. Nos chamados menos cultos, isto é, num Paraná, num Itaboraí, num Cotegipe mais tarde, se sentia a experiência que comunica o trato dos negócios, o cuidado da observação, a matéria dos fatos, dando aos seus discursos a contextura resistente das realidades.
É claro que a todos eles faltava uma educação científica necessária à compreensão de um país que mais do que nenhum outro precisava de uma política construtiva.
Tendo todos os hábitos peculiares aos legistas educados à abstrata, sem um entretenimento forte com a vida material do país levantado nos braços da escravidão para as alturas de um sistema político nascido na Inglaterra, dos próprios fatos, do próprio senso do povo, da própria experiência das liberdades públicas conquistadas ao domínio secular dos conquistadores, da própria originalidade do espírito saxônio, era natural que esses homens se surpreendessem do mau funcionamento desse sistema sobre tribos mais ou menos selvagens, sobre negros escravos, sobre filhos de índios e de negros, sobre filhos de portugueses, sem instrução, sem ideia nenhuma também do que fosse representação popular, direitos políticos, deveres cívicos, etc.
Por falta de capacidade construtiva do povo politicamente inexistente, os estadistas pouco advertidos diante dos problemas eram levados por educação a procurar nos exemplos estrangeiros os moldes a aplicar, as normas a seguir sem cogitar das peculiaridades do meio, das suas condições típicas.
Os homens mais úteis do Império foram justamente aqueles que, menos instruídos nessas leituras estrangeiras ou de natureza mais aptos a travar conhecimento com a realidade, tiveram da nossa gente uma percepção mais precisa e procuraram tirar dela o maior proveito possível, sem, todavia, dela esperar muito.
Não se pode, contudo, deixar de receber uma impressão de respeito desses homens, graves, honestos, imponentes, movendo-se numa atmosfera elevada em torno de um príncipe que me aparece como um verdadeiro milagre da espécie humana.
Devo explicar. Filho de Pedro I, cujos costumes, cuja moral, nós conhecemos; senhor absoluto em um país em que o sistema constitucional era e não podia deixar de ser uma ficção; em uma sociedade sem existência moral porque era baseada na escravidão, esse homem deve ser estudado não só pelo bem que fez, mas, sobretudo, pelo mal que não fez... Imaginem se Pedro I encontraria obstáculos em 1840, em 1860 ou em 1870 para ser um príncipe corrupto, para exercer o seu temperamento exuberante, ávido de prazer.
Não tenciono estudar aqui a ação do Imperador, cuja figura e cujo papel estão a demandar o talento de um grande historiador.
Como vinha dizendo, a eleição por círculos encheu a Câmara quase toda de liberais.
O ministério do Marquês de Olinda, que sucedeu ao gabinete meteórico de Zacarias, foi a última ilusão conservadora.
Dissolveu a Câmara por não poder enfrentá-la.
E a eleição de 63 era a vitória liberal. Estava extinta a missão histórica do partido conservador.
Tinha começado no referver das paixões a decomposição da monarquia. As denominações dos partidos tornam-se palavras vazias de sentido. Já não correspondem à realidade. Os senhores não podem preponderar como dantes. Os anos têm passado sobre o “tráfico”. Até então a ação do imperador era “o pensamento augusto” que fez “a Conciliação” bem recebida por todos. Daí por diante, esse pensamento ia ser “a causa única da decadência do país” e as forças políticas em torno dele iam representar “o papel do polichinelo eleitoral dançando segundo as fantasias dos ministérios nomeados pelo Imperador”, como dizia Tito Franco. Idêntica era a linguagem de Saião Lobato, José de Alencar e de Saraiva, que dizia: - “o poder ditatorial da coroa era uma verdade só desconhecida pelos néscios ou pelos subservientes aos interesses ilegítimos da monarquia”. Silveira Lobo assegurava: “o vício não está nos homens, mas sim nas instituições”. Para Francisco Otaviano o Império Constitucional era “a última homenagem que a hipocrisia rendia ao século”. Os velhos conservadores levantavam-se do seu silêncio para afirmar cousas semelhantes. Nabuco no seu famoso sorites estabelecia: “O poder moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios; esta pessoa (o Imperador) faz a eleição porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Aí está o sistema representativo do país”. E no pedir as grandes reformas, no propor a eliminação do poder moderador, Ottoni, Silveira Lobo, Zacarias, Nabuco, Sousa Franco, Otaviano, Paranaguá, agora unidos, apresentavam o dilema: “ou a Reforma ou a Revolução”.
A verdade é que estava gasta a velha máquina. A fadiga da Monarquia Constitucional era evidente.
Silveira da Mota, Silveira Martins, Afonso Celso, Paula Sousa, todos sem discrepância, não encontravam para as infelicidades do país outra explicação que a “decadência” do sistema constitucional devida à cada vez maior preponderância pessoal do Imperador.
Mas por que de 1854 até 1862, quando se reconhecia essa influência que não podia, na verdade, deixar de exercer-se, pois não assentavam os partidos em grandes camadas da opinião consciente subdividida - por que, pergunto, àquele tempo essa influência chamada, em um misto de respeito e ironia benévola, o “pensamento augusto” a que todos se referiam sem acrimônia, era então, depois de 70, a causa de todos os males, a ação criminosa do “César caricato”, de Ferreira Viana?
Certo, já em 1859, Silveira da Mota se aventurava a dizer:
“As práticas constitucionais enfraquecem-se todos os dias; o regímen representativo tem levado botes tremendos, a depravação do sistema é profunda. No país o que há somente é a forma de governo representativo: a substância desapareceu. Tenteie-se esta chaga da nossa sociedade, e ver-se-á que no Brasil o regímen constitucional é uma mera formalidade. E então acrescentava: “cheguei à convicção de que o vício não está nos homens, está nas instituições”.
Veja-se como esta linguagem se parece com a de hoje! Quase todos os espíritos têm agora um falar parecido com este. “A culpa não é da República; a culpa é dos homens”, dizem uns. “Querem reformar a Constituição? Mas ela não foi ainda executada...” dizem outros. Há os que asseguram, pelo contrário, que a causa de todos os nossos males está na adoção que fizemos de um regímen que não encontrava apoio nas “tradições” nacionais, acreditando com certa ingenuidade que existam tradições entre nós.
Verifica-se facilmente que esse modo de raciocinar sobre os fenômenos políticos obedece a um sistema de educação. Nem Silveira da Mota, nem Ferreira Viana, nem Saraiva, nem Silveira Martins, nem José de Alencar, nem Tito Franco, nem Francisco Otaviano, nem enfim todos os estadistas que se exasperavam com a mentira do sistema constitucional entre nós, se deram ao pequeno trabalho de fazer um estudo ligeiro das condições de raça, de meio, das contingências particulares de um país sem hábitos elementares de política, sem independência econômica, com uma população primitiva perdida na amplitude geográfica do Brasil, e perguntar até que ponto, já não digo toda a população do país, mas ao menos as populações do Rio de Janeiro, da Bahia, do Recife, de São Paulo, das principais cidades em 1860, em 1870, para não falar de 1840 e 1850, poderiam intervir com a sua vigilância efetiva, com a consciência dos seus deveres políticos na direção de um país cuja Constituição assentava no exercício dessa consciência?
Parece que nenhum deles se lembrava disto. Homens de educação abstrata, quase todos eram levados a se preocupar mais com o aspecto do que com o fundo dos problemas.
Adaptamos as instituições políticas da Inglaterra através das sugestões de Benjamin Constant; logo deveriam elas funcionar como na Inglaterra. Raça religiosa e política dos saxônios, seis séculos de experiência das liberdades públicas, senso prático da população, equilíbrio econômico, autonomia do comércio, tudo parecia lhes passar despercebido. E enquanto os discursos enxameavam de citações de estadistas franceses e ingleses, era difícil encontrar uma referência a qualquer dos viajantes ilustres que aqui vieram conhecer o país e em cujas obras tanta sugestão e ensinamento útil deparariam.
Como ainda hoje, os Saint-Hilaire, os Luccock, os Spix, os d’Orbigny, os Castelneau, só de nome se conheciam. E daqueles que a prática do imperialismo das nações europeias obrigou a estudar os processos de colonização das raças mestiças, fora difícil encontrar traço nas obras e preocupações deles.
A ouvir as objurgatórias dos estadistas sobre o que eles apelidavam a “decadência” do sistema representativo entre nós, vem-nos ao espírito, com a perplexidade, uma interrogação. Seria, com efeito, possível que esses homens acreditassem na maravilha de uma provável realidade das instituições que adotaram? Por acaso nunca lhes tivera passado pela mente a ideia da população do Brasil em confronto com a daqueles países que criaram das próprias entranhas do seu gênio essas instituições?
[...]
(À margem da História da República, org. Vicente Licínio Cardoso, 1924.)