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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Alceu Amoroso Lima (pseud. Tristão de Ataíde)

Fostes também daqueles que escarneceram desta Academia, onde há meio século vos aguarda um lugar de honra.

Em 1922, no próprio ano da ruptura entre os “modernos” e os “antigos”, chamastes a esta Casa de “Conselho Municipal da Literatura”. E não havia, nesses idos passados, maior insulto para uma assembléia qualquer, de Letras ou sem elas, do que compará-las ao nosso velho Conselho Municipal, antes mesmo de marcado com o estigma de “Gaiola de Ouro”... No entanto, durante esse triênio decisivo de 1922 e 1924 – entre a Semana de Arte Moderna de São Paulo, a morte de Rui Barbosa, jacarandá da floresta antiga a cuja sombra aliás nunca vos acolhestes, e a clamorosa conferência de Graça Aranha, há pouco neste mesmo recinto comemorada –, durante esse triênio, tão pouco estivestes ao lado dos novos bárbaros. Sempre cultivastes, como a Inglaterra de outrora, um esplêndido isolamento. Já éreis, então, um solitário, mas sedento de comunicação. O contrário, ao mesmo tempo, do misantropo e do mundano. O misantropo é palmatória do mundo. O mundano, a sombra dele. Para vós o mundo não é mau em si mesmo, como pensa o misantropo, nem bom em si mesmo, como quer o mundano. É simplesmente o campo largo, de horizontes sem fim, onde o ser humano se lança, intrépido ou encorujado, para a maior e mais singular das aventuras – a aventura da vida. Sois, por natureza, um aventureiro, um navegante, um descobridor, um poeta – como todo bom sertanejo, sempre impelido pelo vento capitoso da independência. Não éreis então – nesses três anos-chave das revoluções culturais, espirituais e políticas do nosso século, em nossa terra – o único da vossa espécie. Havia então, em nossas Letras, entre os jovens, um grupo de independentes que não se prendiam nem aos antigos nem aos modernos e deixaram, ou continuaram a deixar, em nossa vida intelectual a marca da sua singularidade. Um Jackson de Figueiredo, vosso luminoso coestaduano, um Monteiro Lobato, um Gastão Cruls, um Antônio Torres, um Humberto de Campos, um Agrippino Grieco, um José Maria Belo não ficaram nem numa vertente, nem na outra. Nem com os “modernistas”, nem com os “passadistas”. Nem muito menos com os indiferentes ou os egocêntricos, contra os quais iríeis escrever algumas das sentenças mais candentes da vossa obra. Com esses vossos companheiros de idade, tivestes menos o espírito de geração que o de liberdade. E bastariam a coragem e a fidelidade com que há mais de meio século empunhais essa bandeira – hoje mais do que nunca ameaçada, insultada, escarnecida e até espezinhada – para que as futuras gerações vos sejam gratas, como vos é a nossa.

Homem livre quisestes sempre ser, desde a vossa infância. E como homem livre atravessastes as vicissitudes deste século de repintadas e rebocadas servidões. Esse o vosso estandarte. Essa a vossa glória maior. Não vos deixastes levar, nem pelos sofismas reacionários da pseudocultura totalitária das Direitas, a que facilmente vos levaria o vosso culto pelos super-homens, nem pelos apelos revolucionários da pseudocultura coletivista das Esquerdas. Ficastes fiel ao verdadeiro espírito da cultura humana, cuja maior tarefa, em nossos dias, é impedir que se confunda o meio-termo com a mediocridade, o equilíbrio com o ecletismo, a moderação com a covardia, o diálogo com a conversa-fiada, o perdão com a fraqueza moral. A verdadeira cultura é animada pelo espírito analético – isto é, que coloca cada coisa no seu lugar e sustenta que a interdependência de valores é a base fundamental da sua independência –, ao passo que a falsa cultura é marcada pelo espírito dialético, que prega a supremacia das adversativas – ou isto ou aquilo – sobre o das copulativas –isto e aquilo. Só este espírito de composição harmoniosa e hierárquica dos contrários, inevitáveis na natureza humana, individual ou social, é capaz de impedir que o farisaísmo do – ou isto ou aquilo – se transforme no diletantismo do – tanto faz isto como aquilo. Ou no pessimismo do – nem isto nem aquilo. Vossa sutileza de espírito, Sr. Gilberto Amado, compreende perfeitamente que não estou jogando com palavras, por simples barroquismo lingüístico, mas com os mais expressivos conceitos dos mais patéticos fenômenos sociais do nosso tempo. Sabeis perfeitamente que um abismo nos separa dessa belle époque do diletantismo cultural, durante a qual decorreram a nossa adolescência e a nossa mocidade. Hoje, a gravidade crescente e a premência dos acontecimentos sociais do século desafiam a nossa capacidade intelectual de os interpretar e acaso de os influenciar. Ao longo de toda a vossa vida, esse problema capital da relação entre os fatos e as palavras vos acompanhou passo a passo. Até hoje constitui ele possivelmente o núcleo da vossa personalidade humana. Está no centro de vossa vida de pensamento e de ação, nunca em vós dissociados, nesse meio século, em que vosso nome relembra sempre na perspectiva de nossa vida cultural e social... Vivestes sempre solicitado por esses dois pólos – o da ação e o do pensamento, o dos fatos e o das palavras – e é precisamente nesse esforço contínuo de não permitir que um deles anule o outro ou que o seu encontro represente um meio-termo inconsistente e insosso que estará porventura a marca distintiva de vossa personalidade inconfundível.

Assim foi desde a vossa infância, nesse périplo de cidades que marca o vosso itinerário social e intelectual: Itaporanga, Recife, Rio, Paris, Nova lorque, Genebra. Vejo nessas seis cidades, pequenas e grandes, a via vitoriosa da vossa caminhada de ser metropolitana por excelência. Metropolita! Não será esta uma dessas palavras raras, mas expressivas, que sempre foram para vós uma expressão da Beleza e, portanto, uma das razões mais profundas de viver? Como aquela Constantinopla que, em menino, vos abria horizontes de aventura, que explicavam desde então o sentido profundo de vossa vida de giróvago. Giróvago... não será esta, igualmente, outra expressão que o menino de Estância ou de Itaporanga veria soltar no mar, como o balãozinho vermelho daquele inesquecível filme infantil? Como resistir à tentação de citar, na íntegra, um poema também inesquecível da vossa preciosa inspiração de maior poeta bissexto de nossas Letras? Se vos chamo de bissexto, embora o maior deles, não é para diminuir em nada o valor de vossos escassos mas preciosos poemas. Será, quando muito, uma queixa contra a displicência do poeta. Obedeceis, bem demais, àquele imperativo preceito de preparação poética de que os bons poetas não são aqueles que procuram a inspiração, mas os que dela fogem e só se entregam às implacáveis mênades do verso, quando não conseguem delas escapar. Sois um deles. E dos mais fiéis à regra. Embora toda a vossa vida encontrasse na Poesia o vosso ambiente natural. Tendes, como dizeis em um de vossos poemas, “uma alma cíclica de poeta”, que faz com que “o mundo inteiro em (vós) exista”, só permitindo, porém, de raro em raro, que as palavras aladas de vosso realismo épico tomassem corpo. Um dos poemas em que essas vossas alígeras companheiras encontraram a mais perfeita das expressões é sem dúvida esse admirável “Fora da Moda”, um dos mais belos das nossas Letras.

É fresca, rosada,
Mas inatual, distante,
Antiquada, fora de moda,
És assim como a palavra Arrebol.

Em ti o sol se ilumina
E em ti o sol fica contente,
Em ti tudo se torna mocidade.
És uma alegria, és uma festa
Mas inatual, fora de moda,
És assim como a palavra Folguedo.

És o oposto do dancing.
Do cocktail,
Do cassino,
E da boîte.
És leve, és jovem, mas antiga,
És assim como a palavra Passatempo.

Em ti cantam as cores claras,
Dança a vida nos teus braços
Mas a dança em ti é farândola
É cirandinha,
É roda de São João,
Inatual, evocativa, fora de moda,
És assim como a palavra Festival.

Em ti cantam as cores claras,
As cores escuras em ti trepidam frescas,
Nos teus olhos acendem-se os carvões,
Faíscam nos teus olhos pedras foscas.
És a luz, mas com calor,
E todo esse luzir,
Todo esse brilhar,
Que está em ti e de ti se expande,
É antigo, é fora de moda,
É assim como a palavra Desatino.

Tua beleza se chama Formosura
Teus movimentos se chamam Corrupio.
Eis outras palavras que te vão:
Louçania, anelo, recuerdo,
Partida, moçoila, passeata,
Também deidade, donaire, contradança,
Cortesia, cantoria,
São palavras condizentes com o teu ser...

Como gostaria de ceder a minha Prosa ao encanto dos vossos versos! Como gostaria de transferir às vossas próprias palavras a evocação da vossa infância! Ninguém como vós, em nossas Letras, soube falar com tanta naturalidade de si próprio. Sois, sem dúvida alguma, o maior dos nossos memorialistas. Já será mesmo um louvor que vos desagrada ouvir. Sediço... No fundo de vós mesmo sentis talvez o que dizia S. Francisco de Assis aos seus companheiros, quando se dispunham a comemorar os atos de um santo qualquer. A única comemoração digna de um santo, dizia o poverello, é ser Santo. É evidente que não tendes nenhuma pretensão à santidade. E, antes pelo contrário, passastes toda a vida a brincar de esconder com o demônio, mas sempre com a presença de Donana a vosso lado. E é ela que, na hora final, vos salvará das vossas facilidades, das vossas aventuras, das vossas traquinadas... Pois afinal, Sr. Gilberto Amado, sereis até o fim o mesmo menino travesso de Itaporanga, que a implacável mão de Bernardo ia buscar, à hora de dormir, no meio da farandolagem da meninada. Pois sois, até hoje, um inveterado boêmio, sem que isso vos impeça de tomar tremendamente a sério não só a vida em geral, mas todas as tarefas graves a que vos tendes entregue. Como foi esse Jackson de Figueiredo, vosso conterrâneo, que as águas do mar tão cedo nos levaram. Creio que não fostes amigos. Acredito mesmo que os vossos caminhos, desde cedo, vos levaram a destinos bem diversos. Não estou aqui para vos reconciliar. Quem vos reconciliará um dia não é deste mundo. Nunca foi deste mundo. Mas sempre viveu, neste mundo, como um signo de contradição. Mas uma contradição toda especial, que se encontra no infinito, como as paralelas. E é por isso que, neste momento, nestas palavras, não hesito em juntar o vosso nome ao do vosso ilustre coestaduano que não teve tempo de sentar-se aqui ao nosso lado, e que as ondas do oceano tão cedo levaram para a felicidade da eterna reconciliação. O mar... Foi esta a grande revelação de vossa infância em Itaporanga. O Vaza-Barris, esse rio modesto que Euclides da Cunha imortalizou – pois não bastam os heróis para imortalizar os sítios, como Tróia, ou mesmo a Tróia Negra, é mister que venham os Homeros ou os Euclides, para que os sítios de heroísmo se tornem imortais –, o Vaza-Barris que banhava a vila de vossa infância, o que tinha de mais ilustre não era para vós, então, como para nós hoje, o de ter banhado o arraial heróico de Canudos. Era o fato de desaguar no oceano. E esse mar alto, essa revelação do oceano é que mais fundamente marcou o menino que até hoje em vós subsiste. Como dissestes no fecho do primeiro volume dessa saga incomparável de nossas Letras, que é a história de vossa vida:

“O menino continuou dentro de mim e é à sua presença militante e buliçosa no espírito do homem feito que atribuo haver encontrado no fato de viver a plenitude que a criança encontra no brinquedo.”

Esse fecho de vossas memórias da infância é também o segredo de vossa própria vida. Sois expressão perfeita do homo ludens, pois o brinquedo não é apenas uma fase da nossa própria vida. É, de certo modo, toda a nossa vida. Somos, ao mesmo tempo, homo viator e homo ludens. Somos, na vida, um ser que viaja, e um ser que brinca. Ai daqueles que não sentirem em si profundamente essa dupla vocação – da viagem e do brinquedo. Ninguém de consciência suportará a vida, a trágica aventura de viver, se não estiver possuído desse duplo senso do eterno no efêmero. Somos criaturas de Deus, em estado viatório e lúdico. A grande, a maior sabedoria da vida, reside em compreender que estamos apenas de passagem nesta terra. Nossa morada neste mundo é apenas uma hospedaria. Somos crianças brincando com os acontecimentos e com as palavras, que nos transcendem, tanto uns como outras, de modo inapelável. Só assim seremos, realmente, filhos de Deus. Cristo outra coisa não foi senão o mestre do espírito de trânsito e de gratuidade. É essa a súmula da perfeita sabedoria, dessa sapientia cordis que transcende toda a Ciência e toda a História, isto é, todo saber humano. Toda experiência humana.

Por isso mesmo é que tanto me agrada a importância que atribuís, em vossa autobiografia, à vossa infância. Os grandes poetas e prosadores – se acaso há possibilidade de os diferenciar – sabem perfeitamente que somos, toda a vida, o que foi nossa infância. Proust o disse, na mais culta das nações do mundo. Manuel Bandeira o disse, em nossa própria vida intelectual. E um dos vossos inspiradores invisíveis, Joaquim Nabuco, o deixou explícito em suas Memórias, prelúdio sucinto às vossas. Estância e Itaporanga foram o palco, e mais do que um palco, o molde de toda a vossa vida futura. Nesses povoados, grandes cidades para a vossa infância e adolescência, estavam o berço e o espírito formador de toda a vossa vida futura. Ali se gerou o vosso entranhado amor pelo Brasil e pela realidade brasileira, como ali se formou essa vossa consciência sensibilíssima de homem tão apegado à gleba natal como aos horizontes universais que sempre coexistiram em vosso espírito, sem aquele dilaceramento que tanto fez sofrer Nabuco. Somos o mais universal dos povos americanos. O mais europeu e o mais universal. Ora, a evocação de Portugal e a sedução do mar alto é o que encontramos em vossa infância na vila das margens do Vaza-Barris. Fostes marcado, desde o nascimento, por essa gente “forte” de caráter duro e resistente, que constitui o âmago lusitano do nortista, embora marcadamente brasileiro. Eis como descreveis, em vossas reminiscências de infância, esses duros antepassados que moldaram vossa substância humana, tão rígida de cerne quanto adaptável e compreensiva de polpa.

Essa fauna antidiluviana, esses Matusaléns, esses macróbios sadios, formidáveis troncos de onde procedo, estacam-se linheiros como colunas antigas na minha evocação. Colossos alegres que morrem brincando e só morrem porque jeito não há, pois se jeito houvera não morreriam. E venham nos falar de clima “tropical”, de clima“depauperante”! Essa gente viveu no sertão cru, na caatinga piolhenta ou à beira de águas não pasteurizadas, ou passadas a cloro, do Rio Real e do Itapicuru. Proclamam eles na sua congenialidade ao meio que o Brasil é terra para a vida. Entre eles não há entediados, esplenéticos,gemebundos. A velha Merência, aos 98 anos defendendo de cacete suas frutas, o velho Faria rimalhando suas graças anciãs, patuscando com a filha brincalhona, enquanto a morte os espreita para saltar-lhes em cima... a morte é que parece ter medo deles. Aí não há delicadinhos,gente biqueira, cheia de niques, de “não me toque”, de “deixe disso”,de nariz torcido para as realidades da existência. Gente que honra o fato de viver e em viver se compraz. Raiz robusta enseivada em boa terra, a terra do Brasil, esgalha-se em ramos bons que florescem e frutificam na coragem moral e na aceitação do mal e do bem, frutos da vida. Eu os respeito no meu sorriso divertido, oriundo da mesma jovialidade com que Sinharinha Amado envolvia o seu amor pelo pai. Nenhuma solenidade postiça, nenhum entono bobo ou sobrolho de hipocrisia nessa progênie bíblica, irmã dos patriarcas, núcleos de procriação, fundadores de Pátria.

Foram esses antepassados, de poucas Letras e muito caráter, de estreitíssima visão da vida , mas de implacável apego a ela, que formaram o núcleo de vossa inconfundível personalidade, que hoje leva, ao cenáculo mais universal da convivência política das nações humanas, uma das personalidades mais representativas de nossa brasilidade. Pois ninguém poderá negar, Sr. Gilberto Amado, que sois um homem tipicamente representativo da civilização brasileira, no plano universal. Possivelmente o mais representativo de todos, em suas excelências e fragilidades, naturalmente debatido como todos aqueles que tomam atitudes nítidas, em face das pessoas e dos acontecimentos. Em nossos dias, mais que em tempo algum, quem toma atitudes definidas é necessariamente, como de si dizia o Fígaro de Beaumarchais –Loué par ceux-ci ; blâmé par ceux-là; me riant des sots; bravant  les méchants; je me presse de rire de tout de peur d’être obligé d’en pleurer, numa sentença que considero das maiores de toda a Literatura universal. E gosto de repetir, no silêncio de mim mesmo, quando considero o espetáculo da tragédia de equívocos que hoje, mais do que nunca, jogam os homens uns contra os outros, esquecidos de que só Deus os julgará, em última instância. E que nossas lutas e recíprocas condenações são simplesmente risíveis ou meros brinquedos de criança aos olhos do Eterno.

Em Itaporanga, pois, não era assim que julgáveis as brigas com os vossos colegas, nessa incrível escolinha de Sá Limpa. De lá saístes para a vida, armado para enfrentar todas as contradições, e pronto também para vos adaptar ou, com vossas próprias palavras, “amigo da vida e (dançando) conforme a música que ela prefere tocar. Nunca me desesperando”. Esse conformismo com as situações é que nunca vos permitiu ser igual ao modelo de “grande homem” que sempre cultivastes em vossa existência e que, na nossa História, se encarnou na figura de Rio Branco, “o maior de todos nós”, como o dissestes no extraordinário retrato que dela traçastes. Mas antes de vos acolherdes em vossas missões internacionais, à sombra do “Barão”, e acaso algum dia vos acolhestes à sombra de quem quer que eu fosse, íeis acolher-vos à sombra da Faculdade de Direito do Recife. Sim, vossa infância e vossa adolescência, em Estância como em Itaporanga e um pouco em Salvador, iam continuar no limiar de vossa mocidade no Recife. Recife! Palavra mágica para todo nortista. Recife, entrada do sertão e promontório do universo! Cidade predestinada ao choque de todos os extremos. Cidade clara do nosso passado e do nosso futuro. Ainda hoje sois vós, ó ambivalente, o signum cui contradicetur de nossa cultura. A metrópole das contradições. E vós mesmos, Sr. Gilberto Amado, não sois também um mundo de contradições? Não há, simultaneamente, em vosso espírito a saudade de Itaporanga e o espírito de Genebra? Não cantam, em vossa memória, ao mesmo tempo a voz de Donana e o eco das sereias? Não persistem em vós o caráter duro de vossos antepassados quase analfabetos e gananciosos e a vossa cultura universal e o desprezo pela pecúnia? Não dialogam, dentro de vós, o agnosticismo dos positivistas que embalaram a vossa mocidade e as ladainhas da vossa infância? Não sois franciscano em vossa intenção e nietzschiano na tentação de Zaratustra? Não sois tremendamente apegado ao vosso Brasil da infância e de todos os entusiasmos patrióticos e, ao mesmo tempo, trabalhado pelo horror à nossa incultura, aos nossos ridículos, aos nossos ufanismos? Não sois um cultor dos heróis carlylianos, mas ao mesmo tempo um apologista do perdão e da bondade? Não fizestes a apologia dos homens de ação e da mocidade que pensa mais em ganhar dinheiro que em fazer sonetos e, ao mesmo tempo, um fervoroso adepto da cultura pura e desinteressada sem nenhuma aplicação concreta? Não haverá em vós, dois pólos que vos atraem, simultaneamente, e o homem da terra, que, se não vinha do sertão vivia penetrado de espírito sertanejo, e o homem do mar alto, dos horizontes sem fim, que afinal correspondiam melhor à vossa natureza profunda? Como Nabuco, e um pouco como todos nós, viveis entre dois mundos. Mas se a princípio, como ele o disse no passo famoso da Minha Formação, e o confirmastes na “Chave de Salomão”, era a tentação do Velho Mundo que predominava nos homens cultos do Novo Mundo, hoje é o contrário que observais. E assim o dissestes em 1926, contestando o vosso próprio sentimento da mocidade:

A conclusão a que cheguei, não podendo duvidar da sinceridade de Nabuco, é que o Brasil aumentara o seu poder de assimilação. A Europa é hoje, para nós, a viagem, o estudo ou a recreação, o prazer do clima, o encantamento artístico, a variedade dos dias animados, longe das obrigações quotidianas, o atrativo intelectual, a curiosidade simplesmente. Mas não vive dentro de nós. Em substância não nos interessa senão como um teatro, um espetáculo, um livro. Estamos, os da geração atual, inteiramente desprendidos dela.

“O fundo do quadro”, “o horizonte”, a que se refere Nabuco, desapareceu para nós. O que nos ocupava lá, o que nos prendia a inteligência... era Brasil, só Brasil. (in Minha Formação no Recife, p. 255.)

Como sois o oposto do romântico ou do liberal, não permanecestes no “dilaceramento”, a que se referia Nabuco, nem vivestes angustiado com as vossas contradições. Venceste-as com a maior naturalidade, como clássico, imbuído de espírito goethiano e como primitivo, apegado sempre aos guaiamuns do Vaza-Barris.

Não procurastes nunca ser isto ou aquilo. Fostes, com toda a naturalidade, isto e aquilo.

Em Recife, nessa segunda etapa do vosso périplo, onde chegastes em 1905, é que passastes entretanto “do monólogo ao diálogo”. Foi ali, nessa cidade-encruzilhada que desabrochou definitivamente vossa corola. A semente fora fecunda e forte. A terra sergipana fora generosa e rica. Os anos capitais do Capibaribe iam operar o que vos faltava. Deram à flor do vosso espírito o horizonte por que ansiava a vossa sede de oceano, de mar alto, de comunicação. O eterno solitário, o inconformado e o insatisfeito, o fujão da casa, o amimado da mamãe, o menino da cidade pequena, ia passar a adolescência e a mocidade na cidade grande, à espera que as metrópoles do mundo o colocassem em comunicação com as grandes vozes do universo. A própria Poesia ainda não havia desabrochado em vossa alma. E a vossa cultura ainda não passava do estágio da curiosidade insatisfeita. Em Recife ia agarrar-se a vós a sombra poderosa de Tobias Barreto, embora pela voz de outras sereias européias que se chamavam Kant, Nietzsche e Augusto Comte. E no cenário nacional Lafayette, Euclides da Cunha e o vosso conterrâneo e contemporâneo João Ribeiro. À sombra dessa dupla trindade cultural, do Velho e do Novo Mundo, é que passastes do monólogo interior da infância solitária ao poliálogo extrovertido dos vossos vinte anos incompletos. Kant despertava em vós o espírito crítico, que vos converteu num analista implacável dos vossos atos próprios e dos alheios. Comte vos comunicava o amor da observação científica e das grandes generalizações do espírito, que Goethe mais tarde completaria superando as restrições positivistas. E Nietzsche forneceu à vossa paixão natural pelo homem forte o arsenal filosófico e poético para o humanismo super-humanista que vos tornou um campeão do antiextremismo e do antitotalitarismo do nosso século, embora um admirador confessado daqueles mesmos que, às extremas contraditórias da política contemporânea, desencadearam os mais implacáveis totalitarismos do nosso tempo, como Mussolini e Lenin.

Nenhum desses rasgadores de horizontes, no entanto, foi capaz de arrancar do fundo do vosso ser a pequenina , mas imortal semente religiosa que Donana havia plantado na terra fofa e tenra da vossa infância. Ao contrário de muitos da vossa geração, que é também a minha, não passastes por nenhuma crise religiosa. Como não perdestes a essência, ao menos, da fé da vossa infância. Não conhecestes nem a angústia de a ver sumir-se nem o encanto de a ver voltar. Atribuístes, paradoxalmente, essa imunização à leitura de Augusto Comte.

Por me ter forrado de Positivismo, é que acaso escapei à “crise” a que outros contemporâneos não puderam escapar. Há os que nascem para procurar Deus e o procuram de todas as maneiras quaisquer que sejam as vendas que se lhes ponham nos olhos. Haverá também os que, tendo Deus diante de si, já não experimentaram necessidade de procurá-lo fora. Deixemos este problema.

Foi o vosso caso. Não houve problema religioso para vós, como houvera para os vossos predecessores da Escola do Recife, no século XIX, ou para muitos de nós nesse limiar do século XX. Kant, Comte, Nietzsche, Goethe abriram as portas da vossa inteligência. Mas não conseguiram fechar as janelas do vosso coração. Dentro dele sempre ardeu uma lâmpada votiva, pequenina é certo, bruxuleante, escondida, mas nunca de todo apagada. Espírito de composição e de encruzilhada, como sois e é nisso que está porventura o sinal mais típico do vosso exemplar brasileirismo –, nunca tivestes dificuldades em aposentar, em vosso modo de ser, hóspedes aparentemente contraditórios ou apenas dissidentes, como também nunca vos faltou discernimento pessoal bastante para tirar de cada mestre uma lição, sem necessidade de uma submissão integral ao seu ensinamento. Compreendestes, portanto, perfeitamente que éreis uma natureza muito diversa, por exemplo, do vosso grande conterrâneo Sílvio Romero. “Nem uma só vez me senti arrastado pelas preferências e antagonismos de Sílvio, que não podia conceber a vida e as idéias senão sob o ângulo da antítese.” Sempre vivestes, pelo contrário, sob o signo da síntese ou antes do convívio. Do convívio harmonioso e pacífico dos grandes espíritos, tanto nacionais como estrangeiros, que desde então formaram a vossa família intelectual sem fronteiras, nem no tempo nem no espaço, nem nas ideologias nem nos temperamentos. Sois – por natureza e pela formação cultural também alimentada na voracidade e na seriedade das leituras onímodas do Recife – um homem do Renascimento (embora não moralmente como fazeis questão de acentuar), um Erasmo ou um Da Vinci, aberto a todos os quadrantes, seduzido por todas as sereias, sensível a todos os manjares, do corpo e do espírito, mas sempre fiel à vossa infância e às sementes que nela depositou o amor materno.

Se Pernambuco ia abrir as janelas do vosso espírito para a cultura universal num diapasão já muito diverso do espírito polêmico, unilateral e antitético que caracterizara o movimento de 1870 ali mesmo, em torno da famosa Faculdade em que estudastes e professastes logo depois de formado – também foi ali que se rasgaram novas veredas na floresta ainda confusa da vossa vivência propriamente nacional. E mesmo da formação do vosso estilo, esse puro sangue lingüístico que já agora constitui um dos valores mais perfeitos da língua portuguesa tanto em Portugal como no Brasil.

Na História do Brasil de João Ribeiro aprendestes a considerar a realidade brasileira, em sua formação orgânica e social. Como em Os Sertões de Euclides da Cunha assimilastes esses sertões que sempre haviam cercado de perto a vossa vivência de menino de povoado pequeno e primitivo, e, mais do que isto, fostes levado pelo contraste a decantar a vossa linguagem. Aprendestes, com ele, a fazer o inverso do que ele fazia. Em vez do método amplificador e ornamental que ele empregava, dando à paisagem ou às figuras mais prosaicas um revestimento barroco que as imortalizou, formastes o vosso estilo pelo método machadiano do despojamento. Mas de um despojamento diverso, igualmente, do empregado pelo “bruxo do Cosme Velho”, como o denominou Carlos Drummond de Andrade no seu poema imortal. Vosso método foi outro: o despojamento, a queimada, o desbravamento do mato, mas com a preservação das árvores mais belas, das palavras raras e significativas, simbólicas e irradiantes como antenas de captação e de emissão de sonoridades cheias de sentido, nas quais o conteúdo é tão rico como a forma e esta tão substancial como a própria substância.

Pois em vosso estilo, ao mesmo tempo singularíssimo e comunicativo a harmoniosa fusão de elementos aparentemente antitéticos é um dos segredos da magia incomparável de vossa expressão.

O segredo do vosso estilo está justamente na sua sábia simplicidade, que nunca se corrompe em vulgaridade, na sua concisão que nunca se transforma em pobreza, na sua riqueza verbal que nunca passa a opulência de novo-rico, na sua precisão que nunca se confunde com frieza, na sua sutileza que nunca chega a preciosismo, em suma na adequação perfeita entre a palavra em si e o seu sentido. Tudo isso é fruto de uma qualidade eminente, tanto da vossa personalidade como da vossa obra e portanto do vosso estilo total. Refiro-me à naturalidade que considerais com razão como sendo a nota típica do vosso modo de ser, de pensar, de escrever e de agir.

Em tudo isso, o que reponta é uma nota dominante do vosso pensamento, com a qual defines a Poesia, e nessa mesma definição bem mostrais como sois, acima de tudo, um Poeta. E por isso mesmo escolhestes bem o vosso antecessor, nessa Poltrona, para que um poeta pudesse com autoridade de nascimento e vocação falar de outro poeta, também nato, como foi o nosso Ribeiro Couto.

Poesia, para vós, não é como o vulgo pensa, a fuga à realidade, mas, pelo contrário, a mais aguda penetração no âmago do ser. “Poesia” – dizeis vós, como crítico e o praticais como operário, preguiçoso, mas adestrado, do verso é concretitude. Um poeta vê – porque vê, sente, ouve, cheira, palpita mais concretamente do que os outros indivíduos, isto é, as coisas,  os sons, os perfumes, as formas se lhe manifestam com mais intensidade do que ao comum dos mortais. Poeta e abstração são antinômicos. Só os ignorantes é que pensam que o poeta sonha. Esse conceito popular sempre foi desmentido pelos poetas. O maior poeta é, na sua Arte, o mais prático dos indivíduos. Seu negócio é com a realidade. Dela se assenhoreia como o proprietário da terra e lavra-a como o trabalhador o campo. Todo assunto é poético para o poeta.

Essa profissão de fé realista, na vossa filosofia do verso, que é precisamente a da Poesia mais moderna, no Brasil e alhures, corresponde também, em vossa vida, à profissão de fé realista da vossa participação na política e, acima de tudo, do vosso humanismo brasileiro.

Em 1911, ao chegardes ao Rio, já preparado para as grandes lides do pensamento e da ação, não vos seduzia a política, que no entanto vos enlaçaria em seus braços até 1930, por quase vinte anos. Entre as duas grandes vertentes em que se dividia a vida política brasileira, nesses últimos decênios da República Velha – a vertente idealista de Rui Barbosa e a vertente realista de Pinheiro Machado –, fizestes uma opção que à maioria da mocidade de então, especialmente àquela que ainda não saíra do frágil molde universitário, parecia puramente oportunista. Éramos todos entusiastas de Rui Barbosa e considerávamos o velho Pinheiro como o símbolo do anacronismo da barbaria e da ignorância. Se tivéssemos então de formular um juízo público era certo que vos desaprovaríamos. E no entanto éreis perfeitamente lógico nessa opção, em face da filosofia da vida, que a vossa extraordinária precocidade cultural e a extensão prodigiosa de vossas leituras no Recife alimentavam em vosso subconsciente e que ia tomar corpo, de modo paradoxal, dois anos mais tarde, na famosa conferência de 1913, a “Chave de Salomão”, que considerais, com razão, como sendo a chave de vossa própria personalidade intelectual. Vosso realismo nela se apresentava sob uma forma aparentamente paradoxal: a da condenação do pragmatismo moderno e o louvor da vida do espírito e até mesmo da “superstição”. Estou longe, bem o sabeis, de concordar com todos os tópicos dessa mensagem de vossa mocidade em flor. E bem sei que hoje não subscreveríeis mais algumas afirmativas dessa avalanche de idéias, quase todas magníficas, que brotaram, como um gêiser, do fundo do vulcão interior de vossos 25 anos. Estávamos então no último ano do século XIX que, intelectual e sociologicamente, só terminou, como sabemos, com a guerra de 1914, que ia desencadear, sobre o mundo moderno, este nosso alucinante século XX. Perguntáveis então, a vós mesmo, o que era esse homem moderno, de que já se começava tanto a falar. E respondíeis, inquieto e fulminante:

Uma das coisas que mais me impressionam é a terrível carreira em que nos excedemos. Que é o homem moderno? Um arremesso, uma disparada, uma flecha em direção do dinheiro, da fama ou do luxo. O próprio prazer, mesmo na sua acepção inferior, mas real, deixou de ser o grande estímulo da vida. O que caracteriza o homem moderno é a máxima preponderância da vida exterior. O homem vive fora de si mesmo. O homem é o salão, é o jornal, é a usina, é o teatro, é a rua. Só não é ele próprio; só não é a sua própria alma.

Em contraste com essa desumanização do homem, como diria depois Ortega y Gasset, fazíeis a apologia do homem interior, do homem contemplativo:Quando examino a vida dos homens contemplativos, dos homens solitários, dos homens que vivem no diálogo permanente com a consciência, e vejo a sua felicidade, que nada perturba, nem as dores do corpo, nem os anseios do espírito, e a comparo com a dos homens trêfegos, sofredores, insatisfeitos, pergunto – que fatal instinto os arrasta nessa febricitante agitação em que eles vivem como possessos?... Comparo a sua esterilidade com a fecunda serenidade dos homens contemplativos.

E aplicáveis então o que entendíeis pelo rótulo misterioso da vossa conferência, que fez época:Essa chave de Salomão é o exercício da vida espiritual, a contemplação do mundo... Eu quisera chamar o homem moderno à vida interior. Ele vive fora, é o exilado de si mesmo. Eu lhe quisera dizer: Amigo, olha o mundo, vê as coisas, vê a Natureza e a vida, ouve sobretudo o ressôo que o mundo leva ao fundo do teu coração... Estou convencido de que se os homens começassem a demorar mais a vista nas coisas que os rodeiam teriam dado o primeiro passo para uma grande revolução na conduta humana. Não posso acreditar que o fanatismo político, por exemplo, possa existir em homens que raciocinam, que pensam ou que contemplam.

Esse elogio da sabedoria, Sr. Gilberto Amado, era a mensagem magnífica que vínheis trazer aos moços e aos velhos do nosso tempo. Dizíeis essas coisas essenciais ao humanismo brasileiro, ao sentido profundo da civilização brasileira na América e no mundo moderno, em 1913, pouco antes de começar o século XX. Quem vos ouviu? Quem vos seguiu? Vós mesmos fostes envolvido no turbilhão da Política de um fim de era, que não vos levaria a representar, na prática, o papel que o vosso herói supremo da vida nacional, Rio Branco, representou no início do século, conjugando a vida do espírito e a vida da ação numa harmonia que um ano antes, em 1912, se apagava para sempre. Ficou-nos, porém, dessa vossa profética profissão de fé humanista, a tremenda advertência contra a peste que, a partir de 1914, e principalmente a partir de 1917 e 1921, com os extremismos da Esquerda e da Direita, ia envenenar o nosso século: o fanatismo.

O realismo filósofo, poético e político, a que vos levariam tão precocemente a vossa cultura, a vossa meditação e a vossa experiência da vida e dos homens, era precisamente o oposto do fanatismo, sob cujo signo, entretanto, para mal de nossos pecados, iria desenrolar-se a vida universal do novo século e nos iria atingir em cheio, particularmente depois de 1930. O fanatismo pendular dos extremos e o culto da força, como fonte do Direito e base da ordem pública, a filosofia hitleriana do Amigo-Inimigo, como sendo a base de toda a vida social, tudo isso, que pouco a pouco invadiu a nossa vida pública e particular, tudo era a própria negação do humanismo realista que pregáveis em 1913 e no qual a força moral das “razões do coração” apareciam como sinal típico do humanismo brasileiro, cuja principal característica, como tão bem o dizíeis, é:O poder da Nação brasileira, operando a transformação, em fenômeno social, da bondade individual, peculiar aos corações dos habitantes de uma Pátria nova, sem os preconceitos e hierarquias tradicionais que geram e acumulam nas velhas sociedades ódios profundos entre classes e famílias e antagonismos radicais entre filhos da mesma terra. (“Nacionalismo” in Três Livros, p. 187.)

Destaco, de modo especial, essa vossa apologia da bondade como um traço fundamental do humanismo brasileiro, e procuro aproximá-la da vossa denúncia de 1913 contra o fanatismo de que profeticamente então nos advertíeis, porque esse fanatismo é o desprezo pela Bondade e constitui até hoje o mais premente perigo que nos ameaça. Permiti, a propósito, que me deixe arrastar, um momento, por aquele vezo brasileiro de que, com tanta razão, nos premunis: o gosto da citação. Trata-se do início de uma conferência que um eminente ex-embaixador francês em Moscou, o Sr. Jean Laloy, pronunciou o ano passado em Munich, sobre o “Catolicismo Francês e o Comunismo”.

Referindo-se o autorizado conferencista ao problema das duas forças essenciais que dirigem os acontecimentos históricos, a necessidade e a contingência, mostra como a história do mundo teria mudado se o espírito cristão da bondade e não o espírito pagão da vingança tivesse inspirado, em 1881, o governo czarista, por ocasião do atentado terrorista contra o czar Alexandre II. Eis o relato dos fatos e os luminosos comentários que a respeito borda esse lúcido embaixador.

Em 1881, a 1.° de março, era assassinado o czar Alexandre II, o reformador. Tomando a palavra em público, a 28 de março, o filósofo Vladimir Solovieff exortou o novo czar, se queria ser um monarca cristão, a perdoar aos assassinos do seu pai. O discurso causou escândalo.Solovieff foi expulso da Universidade. Os terroristas foram executados. Seis anos depois novo atentado, sem êxito desta vez. Os novos terroristas foram também condenados. Os responsáveis diretos foram executados. Entre esses havia um estudante muito jovem, Alexandre Iliitch Ulianoff. Foi enforcado. Desde então, como sabemos, seu irmão mais moço se consagrou à ação revolucionária com a energia, o furor e o ódio que um acontecimento tão terrível nele despertou. Trinta anos mais tarde, abatida a autocracia, Vladimir Iliitch Ulianoff, sob o pseudônimo de Lenin, assume o poder e instala na Rússia o sistema político que até hoje ainda o domina. Seja-nos permitido dirigir, por um momento, nossa atenção ao seguinte problema: se o czar tivesse ouvido o filósofo cristão, tanto em 1881 como em 1887, se tivesse perdoado,estaríamos aqui a falar do Catolicismo francês e do Comunismo? Se o jovem Ulianoff não tivesse recebido, na aurora de sua vida, um choque tão profundo, teria ele tido a energia necessária à sua ação revolucionária? Quando nos lembramos que, um dia (Lenin), se queixou de que as lutas políticas constantes o impediram de satisfazer a sua paixão pela música, podemos ao menos fazer a interrogação. Vemos assim como é misteriosa a inserção do Cristianismo e, mais geralmente, das forças espirituais, no mundo político. Se Solovieff tivesse sido escutado, quem sabe se o futro Lenin tivesse orientado, de modo diferente, suavida e sua atuação” (in Nova et Vetera, abril-julho de 1964).

Agora, pergunto eu – se esse vosso apelo à vida interior, às obras da inteligência, à Filosofia e à Arte (“um povo é tanto mais elevado quanto mais se interessa pela Filosofia e pela Arte”), à bondade, ao antibelicismo, à negação da violência e do fanatismo, que em 1913 e em 1917, antes e durante a guerra de 1914, dirigistes a vossos contemporâneos, se tudo isso tivesse sido ouvido pelos homens do nosso tempo, e em vez de permanecerem na indiferença e no cepticismo de um mundo gasto que morria ou no culto da violência e do autoritarismo de uma geração feroz que surgiu – não teria o mundo moderno evitado a catástrofe de duas guerras universais e o espírito de uma terceira possivelmente apocalíptica, assim como feito a economia, de algumas revoluções, inúteis, supérfluas ou contraproducentes?

Infelizmente, porém, não é a voz dos filósofos, dos poetas, dos santos ou dos grandes chefes espirituais da humanidade que é ouvida pelos homens descuidados do nosso tempo. Ou de qualquer tempo. Cada nova geração se lança à conquista do mundo muito mais sedenta de prazer, de conquista e de vingança do que possuía por aquele amor, até mesmo pelos nossos inimigos, que foi o grande Mandamento novo do Verbo de Deus encarnado. Nunca, como em nossos dias, se falou tanto em Cristianismo e se agiu de modo tão pouco cristão. Nesses cinqüenta anos que nos separam daqueles dias ardentes de vossa mocidade em flor – lançando-se nos braços da Política e das Letras, com a voracidade de um jovem conquistador intimorato e sedento de glória e de prazer, de Cultura e de poder –, nesse meio século mudou a face da Terra e não no sentido em que a quisera o jovem banhista do Arpoador, que galgava o Morro da Graça e namorava os olhos da Glória e do Poder, entre o Mar e a Montanha.

Mas como sois confessadamente uma alma de mar alto e não um alpinista, foi na direção do oceano que se voltaram os vossos olhos, a despeito da consolidação do vosso prestígio tão precoce, por uma cátedra tão brilhantemente conquistada na venerável Faculdade de Direito do Recife e das posições de relevo logo alcançadas, sem esforço, no Parlamento Nacional. Fostes levado à Política sem muita inclinação natural. A época era medíocre, apesar do duelo memorável Rui-Pinheiro, e o vosso nietzschianismo vos acenava muito mais para a era futura dos heróis carismáticos do que para o crepúsculo melancólico do liberalismo burguês. Nele já se apagara, em 1912, o foco luminoso de Rio Branco, pouco antes que o mesmo corresse com Pinheiro Machado e Rui Barbosa. No crepúsculo da República Velha não houve tempo nem lugar para o homem novo que representáveis, com ideais também vindos da Alemanha, como discípulo que ainda fostes, ao menos a distância, de Tobias Barreto, o revolucionário de 1870 –, mas em nome de Goethe e de Nietzsche, e não mais de Haecker, Strauss ou Noiré. Com o desencadeamento da avalanche imperialista de 1914 esses vossos heróis da mocidade iam mostrar-se anacrônicos ou falseados pelas bordas dos herdeiros de Bismarck, embora o humanismo de Goethe ainda fosse de modo efêmero inspirar a frágil República de Weimar, logo liquidada pelos novos bárbaros. E o super-humanismo de Nietzsche iria converter-se na monstruosa iniqüidade do Nazismo.

Foi menos então o nosso germanismo goethiano ou nietzschiano que o vosso horror à violência, a vos inspirar aquela página memorável do Grão de Areia, escrita em 1917, em plena catástrofe universal e dirigida a um amigo que se lançara, como todos nós, num aliadofilismo ilimitado. Tivestes, então, o mérito de conservar a cabeça fria, mesmo com o coração ardendo em entusiasmo como sempre, e de ver nessa “guerra para acabar com as guerras” apenas o monstruoso despertar do fanatismo e do culto da violência e da intolerância, que iria desgraçar o nosso século.

Lançastes, então, um grito de protesto contra o racismo, contra o culto da latinidade, a despeito do vosso reiterado “mediterraneanismo”, contra o esmagamento do homem pelas forças do anonimato e da técnica, mas acima de tudo contra o culto da violência, contra a guerra e a revolução em si. “Com efeito”, escrevíeis então a esse vosso amigo real ou imaginário, em 1917, de tal maneira desapareceu do nosso espírito o ideal guerreiro, que o heroísmo tão freqüente dos soldados modernos não nos emociona... A voz da guerra não mais encontra eco em nosso coração... Mentiria quem dissesse que, na engrenagem do mundo moderno, a guerra subsiste com uma função especial... Enquanto vês os exércitos e os seus chefes, enquanto contemplas as nações e os seus dominadores, enquanto o teu pensamento abarca o entrebater das entidades coletivas e dos representantes, esqueces o indivíduo. Nele é, sobretudo, que eu penso com todas as forças do meu coração... Perdido no volume das massas, apagado no corpo das coletividades, mesquinho, obscuro, na grandeza e no brilho dos batalhões, insignificante no renome das pátrias – ninguém se lembra dele, do pobre ser humano, ninguém se lembra dos indivíduos esmagados no choque dos batalhões aos milhares, como protozoários, sob uma árvore que tomba, ou destruídos na fúria de um ciclone... Não é o homem isolado o grão de areia que o simum da guerra, em nome do Estado, foi arrebatar à sua casa para o conduzir aonde talvez ele não desejava?... Nunca, como na era presente, foi tão desgraçada a situação do indivíduo diante das forças organizadas que  o esmagam sob a eufórica denominação de liberdade (in Três Livros, pp.245-262).

Nunca foi tão necessário, como hoje, digo eu, 47 anos depois dessa vossa página profética e memorável, restaurar no coração dos homens o amor da liberdade. Não da ambigüidade liberal; não da distorção hegeliana do conceito; não da impostura das falsas invocações, demagógicas ou reacionárias – mas da autêntica liberdade que é o mais alto sinal da dignidade humana. Esse vosso protesto, de há meio século, contra o totalitarismo ainda não desencadeado,contra o fanatismo e contra o culto da violência, apenas incipientes, iria não apenas antecipar-se ao futuro, como hoje o estamos vivendo com a experiência trágica desses cinqüenta anos, mas ainda mudar o vosso próprio destino.

Iria então começar, para vós, a passagem do plano nacional para o plano internacional. Já, nesse mesmo admirável ensaio de 1917, faláveis na “interpenetração dos povos (como) característica da civilização moderna” (p. 259). A ela iria devotar- se, desde então, a vossa existência. Não que a esse ideal sacrificásseis o vosso inato sibaritismo de gozador da vida, para quem o ideal sempre foi “viver cada momento como se fosse o último” e “pôr toda a energia do espírito no momento que passa”, afirmando que “a sabedoria da vida consiste em fazer de nós o centro do universo”, como o proclamáveis enfaticamente no vosso precoce breviário da vida, de 1913, a que fostes até hoje fiel.

Havia em vosso sangue de marujo nato, dos tempos encantadores da infância em que vosso pai levava o menino estremunhado, Vaza-Barris abaixo, a ver o vapor do ocenano (tal qual Ribeiro Couto, nadando em Santos, entre os cascos dos navios atracados e sonhando com os horizontes transatlânticos a que, como vós, se lançaria até a morte) –, havia em vosso sangue de navegante a paixão dos horizontes. E de modo particular a nostalgia do Velho Mundo, como a do vosso antepassado perante a imagem da cidade do Porto, que o acompanhou da mocidade ao leito de agonia. A Europa foi sempre, para vós, a grande amante, o sonho de vossa mocidade realizado continuamente ao longo de toda a vossa vida. Eis como anos mais tarde, em 1936, depois de a terdes por muitas vezes saboreado, como o mais raro dos néctares do espírito e do corpo, concretizastes a vossa paixão do Velho Mundo em um poema, em que cada palavra é um mundo de evocações e o conjunto uma síntese precisa e capitosa.

Da planura das almas leves
Das aventuras externas, seus movimentos espontâneos,
[seus apetites facilmente saciáveis,
Sonho contigo, Europa côncava, cheia de conteúdo.
Âmago, núcleo, polpa, substância,
Europa estuante de prodígios,
Bazar dos brinquedos do espírito,
Mina dos diamantes do gênio,
Hospital dos agonizantes imortais,
Fonte borbulhante de ânsias comprimidas
Do desejo voraz!
Sonho contigo, coração das sístoles imensas,
Descobertas, Leonardo, Shakespeare,
Penso em ti – Europa eriçada de problemas,
Europa acidentada de filosofias,
Europa labiríntica de abismos e de enigmas,
Europa acumulada de debates e de lutas.
Sonho contigo, ó criadora, ó tentadora, ó corruptora,
Ó aprofundadora
Da planura das almas leves!
Quero aspirar de novo o teu olor de fundo,
O teu relento longo de subterrâneo,
O teu hálito escuro de torrão pisado,
E quero ver coruscar nos meus cabelos
A tua luz de sangue jorrando das usinas de morte
E concentrada na lanterna vermelha
Da tua miséria humana.

Escrevíeis esse poema malarmaico três anos antes que a luz do sangue jorrasse de novo das usinas da morte, embebendo uma vez mais esse torrão pisado pelos séculos, mas sempre rejuvenescido pela esperança, por se haver ali fixado, séculos antes de se lançar à conquista pacífica do mundo, o único Sangue salvador, porque derramado por Amor e não por ódio. O centro do mundo não está na Europa. Está em Jerusalém – entre o Ocidente e o Oriente, acima dos hemisférios e dos continentes, como acima dos Impérios e das Raças –, e onde se acham o berço e o túmulo do Salvador. Mas não foi em vão que de Jerusalém se estendeu, na Idade Média, a Roma, epicentro espiritual, a Paris, epicentro intelectual, a Aachen, epicentro político. Como já, pouco a pouco, se estendera à Irlanda e à Ibéria, à Britânia e à Moscóvia, à África e à América, à Ásia, às ilhas da Oceânia, e agora se prepara para galgar os espaços e passar aos ares nunca dantes sobrevoados. Consciente ou subconscientemente era esse universalismo cristão que vos levava a procurar, no Velho Mundo, as fontes da sabedoria que vos envolvera desde a infância no colo de Donana, e mais tarde, entre os mestres falsos ou verdadeiros da vossa adolescência e mocidade, vos mostraria o Mediterrâneo como o centro do mundo, onde iríeis dançar a vossa “dança sobre o abismo” da vida, entre a tentação dionisíaca e a sedução apolínea como tão fortemente o exprimis nos versos, como sempre precisos e substanciais, essencialmente realistas e antisentimentais, do vosso poema autobiográfico de 1933:

Vai minha vida nas asas do perigo.
Minha vida profusa, diferente,
Com o seu povo de surpresas
Com os seus guias de sempre,
O Imprevisto e o Extraordinário.
Alegre mas arfante, sadia mas fantástica.
Minha vida, que desenho curioso,
Aberta ao arrepio da corrente,
Em abruptas arestas de contrastes!
Longe da estrada comum onde mora o Possível,
E onde o Fácil brinca triunfante com o Normal.
E sobretudo longe do vale da Paz!
O Imprevisto, o Extraordinário,
Esses filhos ricos do Destino,

A tomarem consigo e a arrebatarem
No seu louco saltar e nas suas correrias
Para um mundo de abismos.
Viver é seguir, continuar, geometria plana, linha reta.
Eu ao contrário me puseram num espaço de turbilhão,
Num sistema de prismas e de polígonos,
Num esquema de relâmpagos.
Cada minuto, cada ponto, na linha da minha existência
Pode ser um milagre ou um desastre, uma estrela ou um
[precipício.

Não será o ponto que deve ser, direito, no seu lugar,
Não será o minuto cotidiano do relógio,
O minuto que eu quisera...
É um minuto de túmidos relevos,
Ou de côncavos rebojos.
Ou erguido demais
Ou cavado bem fundo.
Ora réstia de lâmpadas divinas,
Ora hálito de pântanos imundos.

Ó minuto, eu quero parar.
Amigos meus, e meus algozes
– Imprevisto, Extraordinário...
Quero silêncio, quero norma.
Deixai-me construir a minha casa
À beira do rio Regular,
Na rua do Relativo,
Na vizinhança do Conforme,
Sobretudo à sombra da árvore plausível do que se espera.

Paris representou, então, para vós a Europa e esta o encontro com o passado. Como escrevestes no Espírito do Nosso Tempo: “A Europa é uma atmosfera densa, cujas camadas representam séculos. A Inglaterra é construída sobre pedras romanas. Uma rua de Paris é um rio que vem da Grécia”, e mais tarde – comentando essa frase densa de conteúdo e virtualidade, como tudo o que escreveis com o vosso estilo, ao mesmo tempo, supra-sintético e metafórico – iríeis comentar assim: “Essa frase contém matéria para trezentas páginas. Eu poderia desenvolvê-la em mil ramificações” (in Mocidade no Rio, p.211). E partis daí para uma daquelas extraordinárias viagens interplanetárias do espírito através dos tempos, em que sois mestre, brincando com os sistemas, com os estilos, com as épocas históricas, com os Impérios e os grandes Espíritos da cultura universal, como um malabarista com suas espadas e suas esferas. Sois um autêntico mágico das idéias gerais, que volteiam em vossas mãos de artista, com a leveza de bolas coloridas. E a passagem dos horizontes pátrios aos horizontes universais correspondeu, precisamente, à vossa inclinação mais natural. E é sem dúvida um dos traços marcantes do vosso humanismo brasileiro.

A vossa redescoberta do Brasil não terá vindo, precisamente, desse vosso afastamento do cenário nacional? A exemplo desse estranho Lord Jim, de Joseph Conrad, tão diferente de vós, por outros motivos, não terá sido esse vosso exaltado patriotismo (que vos levou até a dizer desaforos aos vossos vizinho de mesa em repastos cosmopolitas) fruído do vosso afastamento do solo pátrio, a um tempo voluntário e compulsório? Como diz La Rochefoucauld, a distância no amor é como o vento, que apaga as velas e ateia os incêndios.O incêndio do vosso amor pelo Brasil se alastrou em função do vosso forçado e mesmo desejado cosmopolitismo. Ninguém, entre os nossos escritores, escreveu com tanto conhecimento de causa e tanto brilho sobre coisas estrangeiras como vós. Nem Eduardo Prado, nem Nabuco. Nem os modernos, a partir desse magnífico Antônio de Alcântara Machado. Mas ninguém, por outro lado, permaneceu tão fielmente ligado à sua terra e à sua gente, como vós, Sr. Gilberto Amado, que nos momentos mais solenes de vossa vida de embaixador tínheis o pensamento preso às vossas reminiscências de itaporanguense...

Passastes, em pouco tempo, de Paris a Nova Iorque, do deslumbramento cultural da Velha Europa aos misteres profissionais de representante permanente do Brasil, desde 1948, na Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas. Começou então o vosso trabalho silencioso por esse ideal de intercomunicação internacional e de paz universal que havíeis delineado nos escritos proféticos de vossa juventude. Nova Iorque, a quinta etapa de vosso périplo universalista, não seria para vós um reencontro com esse passado de que vos havíeis embebido, intelectualmente, pelo deboche de leituras da vossa mocidade estudiosa, no Recife?

Nova Iorque, com todo o seu encanto cosmopolita, que Paul Morand tão bem fixou, em nada mudou a vossa discreta aversão pela civilização norteamericana, onde ouvis, sobretudo, “o rumor universal das máquinas de escrever”. Não seria indiscreto ao dizer que não sois dos mais entusiastas de uma civilização, em que a máquina ao que dizem superou o homem. “A máquina me fecha a alma” (Depois da Política, p. 176).

Mas, ao mesmo tempo, vindes desenvolvendo, no palácio das Nações Unidas, um esforço formidável mas invisível, no sentido dessa intercomunicação entre as nações e dessa barreira contra as soluções primárias, instintivas e violentas dos problemas universais, na simplória ilusão de que a Força resolveriao que só o Amor e a Inteligência podem resolver.

E talvez por isso é que a última etapa do vosso périplo universal não é Nova Iorque e sim Genebra. Por que Genebra?

Por ser, penso eu, a cidade eqüidistante. Não é do Oriente nem do Ocidente. Não é do Norte nem do Sul. Não é da montanha nem do oceano. Não é de elites nem de massas. Não é aristocrática, nem democrática. Não é do Velho nem do Novo Mundo. É à cidade disto e daquilo. É a Pátria de todos os patriotas expatriados. É a terra de Calvino e de S. Francisco de Sales. Nos seus cafés Amiel viveu todas as inquietações do mais intenso subjetivismo individualista, como Lenin preparou a mais implacável das revoluções tecnocráticas e totalitárias. “É a cidade que no mundo, proporcionalmente, abriga o maior número de estrangeiros”, como vós mesmo o dizeis; o centro de uma nacionalidade eqüidistante de todos os imperialismos, da cultura ou da política, que “acolhe todo o mundo é não se dá a ninguém”, ainda em uma dessas vossas sínteses impecáveis, que florescem em vossas obras como os nenúfares nas águas sombreadas. É, acima de tudo, a cidade à beira-lago, onde – “assim como as ruas, cada trecho de margem do lago nos conta histórias,nos fala de Napoleão, de Byron, de Chateaubriand”, ainda em vossa própria expressão. Foi ali que em 1912, na primavera de vossas peregrinações européias,ouvistes pela vez primeira cantar o rouxinol. E o dueto com a patativa nunca mais cessou em vosso coração. Pois ainda foi dessa cidade ilustre – em que as vozes contraditórias de Rousseau e de Voltaire entoaram o dueto da Razão e do Coração, no século XVIII – que há dias recebi a mais recente de vossas missivas. Genebra, a eqüidistante, é o pique onde ides sempre repousar do pega-pega da vida agitada. Como a Beleza baudelairiana, ela pode exclamar:je hais le mouvement qui déplace les lignes. Justamente por ser o oposto, a contradição, o antípoda de vossa contínua gesticulação intelectual e movimentação social, é que representa para vós o repouso, o silêncio e a solidão. E assim como é na poeira, na lama e na miséria de Itaporanga, isto é, no terreno da vossa infância, que ides renovar, como Anteu, ao menos pela memória, a vossa juventude de espírito, é no solo cosmopolita da cidade sem confusão e sem miséria, à beira do plácido Leman, que ides repousar de vossas lides universalistas e pensar no Brasil.

Genebra é o pouso final do vosso itinerário dinâmico que percorremos a vôo de pássaro, de Estância e Itaporanga, a Recife, ao Rio, a Paris, a Nova Iorque, até à beira do lago em que dialogam as sombras dos grandes conquistadores da História. Fostes, ao longo de vossa longa vida, levar a eles a saudação do Novo Mundo, tanto o menino pescador de guaiamuns de Itaporanga sobrevive no cidadão do mundo que hoje aqui acolhemos, com meio século de atraso.

Contastes, na história de vossa infância, o caso do riacho Xinduba que banha o sítio onde íeis, em menino, plantar mandioca sutinga, ver o suco suar no tipiti, apanhar lagartixa com talo de folha de coqueiro, surpreender o guaxinim e o quati. O Xinduba era o riacho da zona. Mas só mesmo a vossa palavra mágica pode evocar a história do rio Xinduba, no sítio do Laranjal.Riacho entrando na mata é espetáculo digno da atenção de menino. A mata, goela grande, devora o riachinho como um bicho fabuloso nas estampas devora cobras. Na mata tudo reboa; um saltar de insetos estrala como mexer de cadeira em nave de catedral. O riachinho entra na mata, perde-se, coitado, extravasa, anda ainda um pouco porque o sol continua dentro dos ramos, mas a obscuridade chega, ele entontece, cambaleia, deita-se por ali. Torna-se lama. Cadê o riacho? Já desapareceu, coberto de folhas secas; morreu o riachinho. Mas o Xinduba não era desses; furava a mata, botava a cabeça lá fora, espiando de baixo da carapaça dos ramos entrançados, dos troncos e dos arbustos; escapava, largava a correr. O Vaza-Barris o estava esperando(in História da Minha Infância, p. 104).

Sois o Xinduba vivo desse sítio do Laranjal. Não permitistes jamais que a goela do mato vos tragasse. Por mais que ficasse gravada sempre, em vossas águas claras da infância, a imagem do vosso berço, abristes caminho através das matas mais entrançadas e obscuras até alcançar o Vaza-Barris da cultura que vos levou aos oceanos do mundo. E hoje aqui se defrontam o Carioca das Laranjeiras e o Xinduba do Laranjal...

Sede bem-vindo, Sr. Gilberto Amado, a esta Casa de mais universal dos nossos escritores. Aqui vos sentireis perfeitamente à vontade, porque sois também vós um mapa-múndi.

29/8/1964