A democracia de nosso tempo se debate com as velhas formas, de baixa intensidade, como se estivesse presa num labirinto que não para de crescer, voltada para si mesma, como realidade única. Trata-se de um monstro voraz, tentacular, labirinto sem fio de Ariadne, que impede a irrupção do novo, porque não admite saídas de emergência. Nutre-se de uma herança de resíduos, obstinados, quase moribundos, como a ideia de território, que já não conhece limites, a de soberania, cujo prazo de validade parece ter expirado, assim como a ideia de povo, cada vez mais incerta e estilhaçada.
Surgem de toda parte profetas da nova democracia, a revelar em algum lugar do passado, o elo perdido da “verdadeira democracia”, ou clamando por um novo absoluto, uma democracia tangível, perfeita, sem as manchas do passado, projetada como a nova religião do futuro, por uma invicta legião de santos.
É preciso realmente abrir as janelas da democracia, para torná-la mais respirável e transparente, ao mesmo tempo direta e representativa, plebiscitária e molecular. Uma democracia multinível, bem entendido, que se desdobre pelo espaço público, contrapoder, por excelência, dos segredos e arcanos da governabilidade. Se na era moderna, o príncipe se tornou invisível para exercer com mais intensidade o poder, fechado dentro de um gabinete, impenetrável, sem janelas, agora é a sociedade que assume toda a visibilidade e protagonismo.
Não nos enganemos, contudo. Essa terra imaginária da democracia perfeita, perdida nos séculos, ou guardada, a sete chaves, no futuro, cujo mapa ou roteiro estaria nas mãos de um iluminado, de mãos puras e ilibadas, proféticas e quase divinas, esse novo extremo que se promete, no discurso de palanque, é algo pueril, insustentável, que não existe nem poderia ganhar foro de realidade.
A constelação de ruínas da democracia de fato aí está, mas não podem ser abandonadas, sob pena de se instituir a barbárie. Como lembra um filósofo, essas mesmas ruínas guardam significados simbólicos de alto valor, ainda que não sejam mais operativas ou suficientemente eficazes.
A nova política não virá de um passe de mágica, do desejo da casta dos puros contra os maus e viciados, num combate sem trégua do bem contra o mal. Discurso patético, se não fosse perigoso, promovido pelos inimigos da democracia, que buscam esvaziá-la de seus defeitos e virtudes, atacando-a por ser positivamente aberta, potencial, inacabada. Uma democracia de alta intensidade virá da mistura das práticas da velha e da nova política, de mãos sujas e limpas, filha na reforma política e eleitoral, mas sobretudo no compromisso de uma nova escola, na esfera de uma inclusão real, para combater os inimigos da democracia, dos que rejeitam os desafios do presente em nome de uma receita mágica, que não existe em parte alguma e poderá levar a grandes desilusões, como também a grandes e inevitáveis riscos.
Nova Política
O Globo, 01/10/2014