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Reinventar a democracia

 

Definido pelo acadêmico Celso Lafer, seu amigo e ex-ministro, no discurso de recepção à Academia Brasileira de Letras como quem “preocupado com a igualdade não dissociada da liberdade, e impelido pelo amor ao Brasil, construiu um novo patamar de possibilidades para o nosso país e a nossa sociedade”, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso aproveitou o discurso de posse na cadeira 36 para revelar sua preocupação com o momento por que passa o país, um “sentimento de incompletude” que tem em relação à nossa democracia, afirmando que “se a arquitetura institucional está quase acabada (ainda se vêem andaimes), falta o essencial: a alma democrática”.

Fernando Henrique criticou “nossa cultura de favores e privilégios, nosso amor à burocracia, à pompa dos poderosos e ricos, de retraimento da responsabilidade pessoal e atribuição de culpa aos outros, principalmente ao governo e às coletividades”, que “desobriga o cidadão a fazer sua parte, a sentir-se comprometido”. Sua preocupação é institucional: ele afirmou que os partidos políticos “se acomodaram às práticas, desdenham da relação direta com as comunidades, preferem não tomar partido diante de questões controversas na sociedade e abdicam crescentemente da função fiscalizadora do executivo, que a Constituição lhes garante, e mesmo da iniciativa na legislação”.

Na ação legislativa, os políticos “organizam-se em frentes suprapartidárias (da educação, dos donos de hospital, da saúde, dos bancos, dos ruralistas e por aí afora), para defender valores ou interesses”. Mas ele advertiu que há sintomas de que há “algo mais grave dos que as crises habituais entre Congresso, Executivo e sociedade”.

Para Fernando Henrique, estamos assistindo aos primórdios da fusão entre a “opinião pública” e a “opinião nacional”: “A ampliação da democracia e da liberdade de informação choca-se com as insuficiências da República. À inadequação das instituições acrescenta-se sua desmoralização, agravada por episódios de corrupção. Produz-se assim uma conjuntura em que demos e res publica se desencontram. esboça-se entre nós, como em outros países, uma crise da democracia representativa”. Ele adverte, no entanto, que “é insuficiente proclamar os valores morais da liberdade individual e coletiva”. Será preciso reinventar a democracia contemporânea, “tornando-a transparente e responsável” para incorporar novos segmentos e novas demandas da sociedade “ou a pressão “de baixo” poderá ser manipulada por formas disfarçadas de autocracia”.

Fernando Henrique chama a atenção para o fato de que “existe um novo tipo de participante nas mobilizações”, tanto aqui como no exterior, graças aos chamados novos meios de comunicação: “Os movimentos espontâneos, interconectando milhares e mesmo milhões de pessoas pela internet, são capazes de desencadear rebeliões que derrubam governos”.

Até o momento, porém, essas rebeliões espontâneas não se mostraram capazes de reconstruir as instituições do poder, alçando-as a outro para patamar. “Até agora às explosões eventualmente vitoriosas, como no mundo árabe, têm-se seguido novas formas repressivas. E sem instituições que canalizem as forças de renovação estas podem morrer no ato de se expressar”. A solução, para evitar “formas de autogoverno” e “grupos anárquicos que predicam a violência”, seria, segundo Fernando Henrique, “nos pormos humildemente a dialogar com os vastos setores da sociedade que só formalmente pertencem à polis”. Esses setores “estão, na maioria das vezes, economicamente integrados, politicamente insatisfeitos e possuem identidades culturais diferentes do que até hoje parecia, equivocadamente, ser o mainstream”.

Para Fernando Henrique, “não há tempo a perder para reconstruir a democracia nos moldes das realidades atuais”. O momento é de “respeito à pluralidade das identidades culturais e de reconstrução das instituições para que elas captem e representem o sentimento e os novos interesses da população”. Só assim, adverte, poderemos manter acesa a chama da liberdade, do respeito à representação e da autoridade legítima e evitar que formas abertas ou disfarçadas de autoritarismo e violência ocupem a cena.

Para que isso não aconteça. “cabe a todos nós, políticos, artistas, escritores, cientistas ou, simplesmente, cidadãos que prezam a liberdade, passarmos da escuta à ação, para tecer os fios institucionais pelos quais possam fluir os anseios de liberdade, participação e maior igualdade dos que clamam nas ruas”.

O Globo, 11/9/2013