O feitiço acabou se virando contra o feiticeiro. Se a polêmica sobre o desmembramento do caso do mensalão na Justiça, levantada pelo advogado Márcio Thomaz Bastos, tinha a intenção imediata de implodir o julgamento no Supremo Tribunal Federal e, como efeito colateral, atrasar o processo a ponto de impedir que o ministro Cezar Peluso possa votar antes de se aposentar, o efeito foi outro.
O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, ficou sozinho no palco, e sua acusação dominará o noticiário durante todo o fim de semana. A defesa, que dividiria com ele esse segundo dia de julgamento, só será protagonista dos trabalhos a partir de segunda-feira.
Nesse intervalo, ficará única para a discussão da opinião pública a peça acusatória de Gurgel, que fez relembrar os detalhes daqueles dias de crise política de 2005, quando a todo momento surgia um fato novo para estarrecer a cidadania. Diante da profusão de provas e evidências desfiadas por Gurgel, fica muito difícil sustentar que o mensalão foi uma farsa, que nunca existiu. Essa tese passou a ser mais facilmente disseminada nos anos seguintes à crise, quando o ex-presidente Lula se recuperou do golpe e passou a fazer um governo muito popular, que permitiu que mudasse de posição diante da maior crise que enfrentou sem que lhe fosse cobrada mais rigorosamente essa incoerência.
Daquele homem arrasado que pensou em renunciar ao mandato no fundo de uma depressão, e que pediu perdão aos brasileiros, dizendo-se traído, ao líder arrogante que passou a defender todos os envolvidos e disse que se encarregaria de demonstrar "a farsa" do mensalão, que teria por objetivo derrubá-lo do poder, vai uma distância muito grande que nada justifica, a não ser a decantada capacidade do brasileiro de a cada 15 anos esquecer os últimos 15 anos, segundo Ivan Lessa, ou, mais pessimista ainda, Millôr Fernandes, que dizia que a cada 15 minutos o brasileiro esquece os últimos 15 minutos. Pois a acusação de Gurgel teve a virtude de relembrar as "tenebrosas transações" ocorridas naquele período, desde os carros-fortes que carregavam a dinheirama dos mensaleiros até a lavagem do dinheiro em diversas modalidades financeiras e os saques na boca do caixa, tudo se encadeia, perfeitamente provado em perícias e documentos.
Diante do exposto, inclusive das confissões feitas rigorosamente por todos os acusados, fica impossível alguém dizer que não houve movimentação ilegal de dinheiro entre o PT e seus aliados políticos, com a utilização de diversas manobras para mascarar as negociações.
A tese do mero caixa dois para pagamento de campanhas eleitorais fica fragilizada diante do sofisticado sistema de desvio de dinheiro público montado para irrigar cofres dos partidos com empréstimos fictícios e contas no exterior. E, mesmo que fosse verdade, o desvio de dinheiro público é crime que não se atenua com o objetivo final da aplicação do produto do roubo, mesmo que tivessem feito doação a obra de caridade ou ao Fome-Zero, conforme salientou Gurgel
A acusação encarou também os comentários de que não haveria provas nos autos para condenar o ex-ministro José Dirceu, classificando-os de "risíveis". Para derrubar essa visão, Roberto Gurgel salientou que as provas testemunhais têm o mesmo valor das documentais e citou a teoria do "domínio final do fato", do jurista Heleno Fragoso, que define o autor do crime como aquele que pode decidir quanto à sua realização e consumação.
"Nas palavras do mestre, seria autor não apenas quem realiza a conduta típica, objetiva e subjetivamente, e o autor mediato, mas também, por exemplo, o chefe da quadrilha que, sem realizar a ação típica, planeja e decide a atividade dos demais, pois é ele que tem, eventualmente em conjunto com outros, o domínio final da ação."
Para enfatizar que José Dirceu era realmente o "mentor, protagonista e idealizador" do esquema, Gurgel citou o testemunho de diversos políticos, líderes partidários e empresários que negociavam pessoalmente com ele "entre quatro paredes", algumas vezes até mesmo no Palácio do Planalto.
Roberto Gurgel chamou a atenção para o fato de que os chefes de quadrilha não mandam ordens por escrito, não combinam os golpes por telefone ou por e-mails. E, mesmo sem o chamado "ato de ofício", é possível definir a responsabilidade de José Dirceu no comando da quadrilha.
O Globo, 4/8/2012