Nesses dois últimos anos houve uma devastadora epidemia de vampiros, que assolou nosso mercado editorial. Monstros aparentados com Drácula ou com a brigada dos diabos dantescos, sob os raios canônicos da lua e os não menos clássicos e afiados caninos. Podemos tomar tranquilamente um bom café na companhia do conde romeno e de suas variedades: um sem-número de figuras ambíguas, vagantes, filhas do reino das trevas. Todas ligadas a Drácula e ao vistoso príncipe do mal. Dentro desse conjunto disperso, destaco a antologia de Bruno Berlendis sobre a biodiversidade ficcional dos vampiros. Trata-se de um belo atlas literário e de uma oportuna antologia. Com vagas sempre disponíveis a uma zoologia mista.
Dessa não pequena literatura gótica, chega ao Brasil uma interpretação firme, que reage à saturação hematófoga e folhetinesca. Refiro-me ao romance do romeno Marin Mincu, patrício da terra dos vampiros, que explora a vida de Drácula, aliás, do príncipe Vlad III da Valáquia, de tal maneira que os limites da história e da ficção afrouxam a dura vigilância alfandegária, que porventura as distingue, no uso de antigos documentos, distribuídos com severo tônus poético, ao longo e ao largo de suas páginas.
É mais difícil descrever Marin Mincu do que o próprio conde Drácula. Tenho para mim que um depende do outro, tão imbricados se mostram como personagens. Mas peço que isso permaneça em segredo, leitor, para que não me acusem de repisar, de forma ingênua, a velha e descabida dependência entre o autor e sua obra.
Marin Mincu nasceu em Slatina, no ano de 1944, e faleceu em seu apartamento no ano de 2004 em Bucareste. Mas como defini-lo? Mincu era um vulcão em plena atividade, expelindo fogo e lava a cada sentença. Admirado e odiado por todos, querido por poucos, em estado de guerra permanente, suspenso com tímidas pausas de armistício. Vivia mordido pelo desafio, pela presença instigante do adversário. Como se habitasse a arena de um coliseu imaginário. Como um leão ávido de carne poética. Mais do que da carne, do sangue, tão impiedoso e devastador se fazia. Não importava se fossem iniciantes ou medalhões. Dava no mesmo: eram troféus de caça. Queria simplesmente esmagá-los. Proclamar-se vencedor. Depois disso, trazia o adversário de volta, ajudava-o a se recompor, fazia as pazes e criava laços de amizade. Mas durava pouco. Uma nova luta se reiniciava, sempre mais ferrenha ou impiedosa. Não lhe faltavam interlúdios generosos, como no sem-número de prefácios, que lhe requisitavam de todo o país, ou nas páginas da revista Paradigma, aberta para amigos e desafetos. De temperamento flutuante, ia de gestos rudes a rasgos de delicadeza. Anjo ou monstro, de acordo com as opiniões excessivamente polarizadas.
O diário de Drácula o tornou mais conhecido na Europa, cuja publicação foi recomendada por ninguém menos do que Umberto Eco. O que não espanta, pois o paralelo de O nome da rosa com O diário de Drácula é possível, através de alguns pontos. Na moldura do quadro da história, nas cores do desenho ficcional, desde o estudo das fontes à ideia do manuscrito e do ritmo de uma aventura intelectual. Mas esse paralelo não passa da superfície. O Drácula de Mincu é resultado de uma pesquisa mais restrita e menos ambiciosa que a de Eco, do qual depende.
No diário temos a voz do conde Vlad, repassando os momentos-chave de sua vida, com lances de ironia, desabuso e crueldade, entrecortados por um breve conjunto de formas quase amenas. Uma personalidade variegada, do conde Vlad, amigo de livros ou incunábulos, exímio poliglota, íntimo dos clássicos, leitor dos maiores pensadores da época, dentre os quais os legendários Marsílio Ficino e Nicolau de Cusa, atento à Academia Platônica de Florença, ao mundo das ideias e ao mito da caverna, intrigado com a poesia mística, sem jamais ter sido, como é óbvio, um bêbado de Deus. Se não deixou de ser um homem de cultura, foi acima de tudo um homem de ação e de combate, a esperança viva do papa Pio II, e de toda a cristandade, no duro combate que Vlad travou contra os turcos, combinando a arte da guerra com o vigor da astúcia com a crueldade.
Nas páginas de Marin Mincu, vemos o conde nas ruelas fascinantes de Istambul, as águas claras do mar de Mármara e os altos minaretes, que despontam da antiga basílica de Santa Sofia. O herói de Marin conhecia bem os "inimigos da cristandade" e parece mesmo que Vlad começou a ser Drácula, a partir das atrocidades sofridas por ele entre as ruínas de Bizâncio. Parte fundamental das fronteiras atuais do leste europeu, deve-se ao gênio estratégico do conde valáquio.
E, no entanto, o desfecho das lutas internas determinou a sua derrota. Capturado por Matias Corvino, vive, ao longo do romance, seus últimos dias numa prisão escavada sob o Danúbio. Escreve protegido por uma densa escuridão, toda pontilhada de ódio e medo. E talvez de uma ponta de nostalgia, na companhia dos ratos e de alguns mistérios insolúveis.
O livro é uma espécie de romance de formação, onde o sangue derramado e a crueldade lembram o Heliogábalo de Artaud, menos pelos episódios ferozes, do que pelo espírito de desafio e liberdade que movem a narrativa.
Não tenho dúvidas de que Marin Mincu foi um dos intelectuais mais completos da Romênia do fim de século, ao lado de Marin Sorescu, Mihai Zamfir ou Nicolae Manolescu. A inovação teórica da investigação, as janelas da poesia, os livros de ensaio e antologias são obras de repercussão, que lhe renderam o prestigioso prêmio Herder. Além do romance Intermezzo, de leitura mais exigente, Mincu é autor de O diário de Ovídio, onde se volta para a cultura romena antiga, o substrato daco-trácio e a língua latina, tesouros da cultura romena. Preciso confessar que hoje me sinto mais próximo de Ovídio que de Drácula, pela sua despojada tessitura poética.
Do último encontro que tive com Marin Mincu, no café Capsa, ficou-me a certeza de que ninguém mais do que ele poderia escrever o diário de Vlad. Disse-lhe que, correndo o risco de me tomar por um Sainte-Beuve, eu tinha a certeza de que ninguém mais senão ele poderia escrever um livro feroz e comovente, estranho e familiar, com impensados clarões de poesia e uma espécie de alta-voltagem ligada ao fio-terra das coisas concretas. Interrompeu-me, com ironia: "Foarte bine, Dracula sunt eu" (pois muito bem, eu sou Drácula). Salvei-me com o Evangelho e assim me defendi: "Marin, tu o disseste".