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Olha, mamãe, sem as mãos

 

Esses dias, o ator Francisco Cuoco, da Globo, levou um tombo de bicicleta. Nada grave, ele teve só escoriações, mas seu orgulho provavelmente ficou abalado. Ciclista que se preza não cai da bicicleta nem se acidenta; este é um veículo que, mesmo tendo só duas rodas, a gente consegue controlar, e existe até quem faça nele arrojadas acrobacias.


Bicicleta era o sonho maior de minha geração; na verdade, um símbolo de independência. Andar pela Redenção em alta velocidade, por exemplo, era um deslumbramento. Maior ainda quando a gente andava sem as mãos.


Andar de bicicleta sem as mãos. Isso eu nunca consegui, mas sempre tentei. Porque era o máximo na carreira do ciclista, a consagração. Exigia uma técnica especial: tratava-se de controlar o rumo do veículo, usando para isso, e de maneira muito hábil, os movimentos do corpo. Não é fácil, e envolve riscos, como o ilustra a historinha que encontrei num blog português: “Um miúdo que acaba de receber uma bicicleta de presente, não para de fazer habilidades à frente da mãe: – Mamã! Mamã, olha, sem as mãos!... – Mamã! Mamã, olha, agora, sem os pés e sem as mãos!... Passado um bocado: – Mamã, olha, sem os dentes!”


Desfecho meio sádico, mas notem outro detalhe, expresso na frase: “Mamã, olha, sem as mãos”. Frase extremamente comum, aliás: se vocês entrarem no Google encontrarão mais de 800 mil referências a respeito. Porque realmente é uma situação típica: a primeira pessoa a quem o garoto, ou a garota, quer mostrar o seu sucesso na bicicleta é justamente a mãe. E isso equivale àquilo que os antropólogos denominam de “rito de passagem”.


Andar de bicicleta sem as mãos significa deixar a infância para trás, mostrar que, ao menos no selim, temos controle de nossa vida; sabemos para onde vamos e podemos chegar ao nosso objetivo com a maior desenvoltura.


Uma cena que depois vai se repetir de várias maneiras. Na formatura da Faculdade: “Olha, mamãe, sem as mãos”. No dia de mudar para o apartamento no qual vai se viver sozinho: “Olha, mamãe, sem as mãos”. No casamento: “Olha, mamãe, sem as mãos”. No nascimento do primeiro filho: “Olha, mamãe, sem as mãos”.


Lá pelas tantas a frase some de nossas vidas. Em primeiro lugar porque a bicicleta já não é o nosso meio de transporte, e sim o automóvel, e este não dá para dirigir sem as mãos. Num antigo filme o frustrado e amargurado Kirk Douglas está dirigindo seu carro num túnel quando de repente ocorre-lhe exatamente isso, dirigir sem as mãos.


Larga o volante e está ali, deliciado, com a façanha, quando o motorista de um caminhão que trafega ao lado percebe o que está acontecendo e faz-lhe sinais desesperados para que não corra esse risco. Num impulso raivoso Kirk Douglas pega a direção, e vira-a violentamente, jogando seu carro contra o caminhão. Uma história que, portanto, termina mal.


Há outras melancólicas possibilidades. Muitas vezes a nossa mãe já não está entre nós. Já não a temos como referencial, como fonte de aplausos. Uma carência talvez sentida pelo personagem vivido por Kirk Douglas e capaz de explicar o seu tresloucado gesto.


A vida, contudo, às vezes é melhor que certos sombrios filmes. Sempre podemos, em imaginação, voltar a usar as nossas bicicletas. Sempre podemos retornar aos trajetos de nossa infância. Pedalando sem as mãos.


Zero Hora (RS), 12/9/2010