Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Uma tragédia brasileira

Uma tragédia brasileira

 

O Palácio do Catete, no Rio de Janeiro,é um dos mais belos exemplos da arquitetura neoclássica no país. O prédio, luxuosamente decorado, tem entrada pela Rua do Catete,os jardins estendem-se até a Praia do Flamengo e é um prazer caminhar por suas areias, entre a luxuriante vegetação, os espelhos d'água,as estátuas de bronze em estilo europeu.Também se pode visitar o palácio propriamente dito, mas aí a sensação é outra: o terceiro andar foi o cenário terminal de um dos mais sombrios episódios de nossa história : o suicídio  de Getúlio Vargas, ocorrido a 24 de agosto de 1954, o triste final para a tragetória política de repercurssão nacional e internacional, trajetória esta  que se havia iniciado 24 anos antes, quando comandando as tropas na revolução de 1930, Getúlio chegava triunfante, à então capital federal. Afastado do poder em 1945, na onda global de democratização que se seguiu ao fim da II Guerra,Vargas retornou à Presidência consagrado por maciça votação. Encontrou uma tenaz oposição, que conseguiu encurralá -lo, desencadeando um final tão inesperado quanto chocante, um final que só teria alguma correspondência no suicídio de Salvador Allende.


Suicídios entre políticos latino - americanos, sobretudo aqueles classificados como caudilhos, não são  frequentes. Mesmo alijados do poder, mesmo exilados, continuam desfrutando de uma cômoda existência. Mas Getúlio, ainda que visto como caudilho, era diferente. Mostra-o o quarto de dormir onde se matou: um aposento absolutamente despojado, monástico, refletindo uma existência que transcorreu do mesmo modo. Poder foi talvez o objetivo maior dele, mas não a riqueza, nem o luxo.Caudilho, talvez; mas caudilho melancólico. O veterano pscicanalista João Gomes Mariante defende a tese de que Getúlio tinha, de ha´muito, tendências suicidas, o que, no RS,não seria exceção. Quando comecei a trabalhar em saúde pública, examinamos, meus colegas da Secretaria de Saúde e eu, as estatísticas de mortalidade e ficamos impressionados ao constatar que o estado era o campeão de suicidios no Brasil.Claro, bem podia ser que aqui essa causa de morte figurasse mais frequentemente nos atestados de óbito em que outros lugares era negado; mas trabalhos posteriores confirmaram a constatação. De qualquer modo, e como disse o jornalista e escritor Otto Lara Rezende, Getúlio disparou um tiro não só em si, mas também em seus inimigos; uma última e desesperada tentativa de reagir.


Uma tragédia  Americana é o título de um famoso romance de Theodore Dreiser. Ignoro se existe obra similar no  Brasil. Se existisse, Getúlio Vargas seria o personagem ideal.


No último fim de semana estive na Bienal do Livro em São Paulo, um evento promovido pela Câmara Brasileira do Livro e que neste ano parece ter chegado a seu auge. Os pavilhões do Anhembi estavam cheios de gente, as atrações eram numerosas. Num momento em que a discussão sobre texto digital está na crista da onda, isto leva a uma interrogação no mínimo curiosa: como fazer um evento desses sem o clássico objeto que é o livro, sem estandes expondo milhares de publicaçãoes ? Uma Bienal de livros digitais seria eminentemente virtual, realizada através da Internet, mas, onde ficaria o contato humano, a amável convivência proporcionada por feiras, bienais e festivais literários, sem falar nas livrarias propriamente ditas ?Agora, a gente se dá conta de que o livro não é só um objeto, ele é um símbolo, um elo afetivo entre pessoas. Viva o Kindle, viva o iPad, mas viva também Gutenberg. E sobretudo viva Gutenberg no Brasil, que agora finalmente começa a descobrir a leitura.


Zero Hora (RS), 24/8/2010