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Gilberto Freire e as duas culturas

 

A expressão “as duas culturas” teve origem em uma conferência ministrada em 1959 pelo cientista e escritor Charles Pierce Snow na Universidade de Cambridge,Inglaterra. Publicada em livro, teve enorme repercussão.Snow defendia a idéia de que entre intelectuais e literatos deum lado, e cientistas de outro, há uma distância muito grande,um território que poucos se atrevem a percorrer. Um dos que o fez, e com grande sucesso, foi Gilberto Freyre,homenageado na recente Festa Literária de Paraty. Freyre foi o legítimo homem de vários instrumentos, historiador social,sociólogo, antropólogo, psicólogo, biógrafo, ensaísta,ficcionista, cronista, poeta e pintor, e acima de tudo homem de vasta cultura.


Filho de um destacado jurista, muito cedo teve contato com os livros. Estudou nos Estados Unidos, o que era raro naquela época, e, na Universidade de Columbia, em

Nova York, conheceu o grande antropólogo Franz Boas, que viria a ser seu guru: iniciou-se nas ciências sociais e em 1922,o ano da Semana de Arte Moderna, publicou sua tese de mestrado Social life in Brazil in the middle of the 19th century (Vida social no Brasil em meados do século dezenove).Mas a obra que o consagrou foi sem dúvida Casa Grande & Senzala,de 1933, magistral interpretação da vida no Nordeste, um livro que até hoje lê-se com prazer.


Contudo cabe a pergunta: é ciência? Um questionamento que o próprio Freyre se fazia. Em Como e porque sou e não sou sociólogo (Editora da Universidade de Brasília, 1968), um título que já reflete essa ambiguidade, ele se pergunta: “O que principalmente sou?”, e responde : “Creio que escritor. Escritor literário. O sociólogo, o antropólogo, o historiador, o cientista social, o possível pensador são em mim ancilares do escritor.Se bom ou mau escritor é outro assunto.” E explica por que pensa assim: “ Reconheço não ser o meu um modelo de estilo científico, admitindo-se que fosse um estilo antes científico do que literário aquele que eu procurasse atingir. Mesmo porque o ideal, em trabalhos puramente científicos, parece ser a quase ausência de estilo. Confesso-me anárquico, um tanto personalista, um tanto impuro, um tanto contraditório, um tanto desordenado.”


Isto não impediu que tanto seu trabalho como seu estilo fossem aclamados por gente de peso. Diz José Lins do Rego:“Quem se dirige como ele pelas marés da vida, quem põe como ele, acima das teorias e dos partidos, a vida, o homem,a pessoa, a terra, o céu, as águas, os bichos, as árvores, será mais que um sociólogo, mais que um político, mais que um cientista, será o poeta que sobreviverá a tudo mais.” Muitoslivros de Freyre demonstram esta superposição entre ciência e humanidades. Cito como exemplo uma obra que li como jovem médico: Sociologia da medicina. Publicada pela primeira vez em 1967 pela Fundação Calouste Gulbenkian (Portugal), foi reeditada em 1983 pela Globo com o título de Médicos, doentes e contextos sociais: uma abordagem sociológica.


O livro, que Freyre, nunca muito modesto, não hesitava em rotular como “pioneiro” não é o resultado de um trabalho realizado em hospital ou numa instituição de saúde ou numa unidade sanitária. Resultava antes, e tipicamente, de suas observações pessoais e dos textos especializados que ele,exaustivamente, consultava. São dezoito capítulos, que falam do “relacionamento médico-doente, medicina-sociedade,medicina-complexo cultural, medicina-ecologia”.


Uma abordagem ampla, portanto, que pode, no entanto, ser sumarizada na constatação de que o ser humano, mesmo doente, e principalmente doente, é um ser social, e que a

medicina deve levar em conta essa dimensão social: “Há quem considere uma medicina apenas científica ou apenas médica ultrapassada por outra, que se denomine‘compreensiva’ ou ‘compreensivista’, no sentido de procurar compreender ou alcançar o doente o mais possível na sua totalidade de pessoa ou de indivíduo socializado em pessoa.”Esta busca de compreensão, contudo, é feita de maneira peculiar, freyreana.


Para começar o título de cada capítulo nem sempre está relacionado com o conteúdo; Freyre divaga, aborda assuntos similares, e ao fazê-lo, muitas vezes se repete. Usa a primeira pessoa, o que é raro em textos científicos, no qual a impessoalidade, a neutralidade, o distanciamento são a regra.Cita muitos autores, em geral famosos, mas as referências bibliográficas ali não seguem qualquer norma, ainda que no final haja uma bibliografia (“Sugestões para leituras subsidiárias”) bem organizada.


O autor defende enfaticamente seus pontos de vista, e por vezes o texto adquire o caráter de doutrinação, de arenga;contudo os argumentos raramente se apóiam em números e isto, em termos de literatura médica, chama a atenção.Predomina hoje a medicina baseada em evidências, que não depende da autoridade de quem escreve ou de quem é citado;as evidências são numéricas. A epidemiologia, ciência que estuda quantitativamente os fatores que presidem ao surgimento e à distribuição das doenças, tem um papel fundamental, do qual o autor não toma muito conhecimento.Enfim, um Freyre típico. Que, do misterioso território situado entre ciência e humanidades, nos convida a viver com ele mais uma aventura do espírito.


Correio Braziliense, 10/8/2010