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A irmandade da leitura

 

Numa época, era costume, entre alguns grupos de jovens, andar com um livro sob o braço. Era o que se chamava ironicamente de cultura de sovaco, e tinha uma dupla finalidade: ter sempre algo disponível para ler na fila do banco, ou na parada do ônibus, ou na lanchonete. Servia também para identificar o portador do livro como membro de uma irmandade: a irmandade da leitura, formada por aquelas pessoas que veem no texto uma privilegiada porta de acesso ao mundo em que vivemos. E que são ajudadas por esta peculiaridade da anatomia humana, que é a conformação da axila. O sovaco não é bem algo do qual possamos nos orgulhar; jamais alguém dirá de um homem algo como: Que belo sovaco ele tem!. Ao contrário, a axila é a principal fonte do CC, o Cheiro de Corpo, que faz a alegria da poderosa indústria do desodorante. Mas, humilde como é, o sovaco revelou-se, para a literatura, um abrigo ideal. A tarefa de levar o livro fica consideravelmente simplificada, porque as mãos ficam livres. Além disso, o sovaco fica perto da intimidade do corpo, do coração que bate mais forte com as emoções da leitura, dos pulmões, que nos lembram a inspiração, literária, inclusive.


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As pessoas que fazem parte da irmandade da leitura reúnem alguns característicos especiais. Em primeiro lugar, têm uma necessidade quase orgânica, quase visceral do texto; seu olhar só encontra tranquilidade e alegria quando pousa na página impressa, em geral de um livro, mas pode ser também um jornal, uma revista, uma bula de remédio – qualquer coisa para ler. Essas pessoas também têm uma atração irresistível por livrarias. Podem estar atrasadas, a caminho de um compromisso urgente, mas se passarem por uma livraria entrarão, e muito provavelmente sairão de lá com um livro (talvez no sovaco). E por último, mas não menos importante, essas pessoas ficam felicíssimas quando alguém, numa roda de conversa, pergunta: "Vocês já leram o último livro do...". Não importa o autor, ou a autora, não importa o título do livro; o que importa é que alguém vai falar em literatura, identificando-se, portanto, como membro da irmandade da leitura.


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Muitas vezes a irmandade se institucionaliza sob a forma, por exemplo, de oficinas de leitura ou de grupos de leitura, atualmente muito comuns. Isto não tem impedido que algumas pessoas mostrem-se apreensivas em relação ao futuro do livro. Por causa das novas técnicas eletrônicas que, dizem, vão mudar o objeto chamado livro. A mim, particularmente, isso não preocupa. Há uns meses vi, no aeroporto de Chicago, um rapaz com o Kindle, aquele dispositivo eletrônico que permite baixar textos à distância. Ele carregava-o sob o braço. Nas axilas dos verdadeiros leitores há lugar para todas as aventuras do intelecto humano.


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Cada vez que se elege um novo patrono da Feira do Livro – e neste ano a glória coube a este grande escritor e grande ser humano que é o Carlos Urbim –, eu fico com inveja do Hugo Chávez. Por uma razão simples: como outros, já fui patrono de nossa Feira. Mas, naquela época, ser patrono era fazer um discurso na inauguração da Feira e pronto. Hoje, não. Hoje o patrono é um verdadeiro monarca. Contudo, a Feira não permite reeleição, e é isso que dá inveja do Chávez, o inventor da eleição indefinidamente repetida. Que tal o modelo Chávez para a Feira?


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Registro e agradeço as mensagens de Francisco Neto de Assis, Rodrigo Rose, Perseu J. da Silva Machado, Peter W. Rosenfeld, Waldomiro Minella, Clara Bernardete B. da Silva, Asa Heuser, Marylise Bender, Gilda Haubert. Gente culta e sensível está aí!


Nas axilias dos verdadeiros leitores há um lugar para todas as aventuras do intelecto humano.


Zero Hora (RS), 8/11/2009