À medida que o tempo passa e novas denúncias vão surgindo, fica mais claro que a CPI do Cachoeira é uma grande oportunidade para fazer a verdadeira faxina ética que os acontecimentos estão a exigir da sociedade brasileira. Criada por interesses nem sempre os mais transparentes, essa CPI pode se transformar na nossa chance de zerar o jogo político e começar de novo, diante das evidências de que os tentáculos da quadrilha do bicheiro goiano há muito evoluíram para além de suas próprias fronteiras.
Parece claro a esta altura que a CPI dificilmente servirá aos interesses partidários que a geraram, dentro do PT ou até mesmo na oposição, que começou o processo como a grande vítima devido à descoberta das ligações do senador Demóstenes Torres com o bicheiro, e quer virar o jogo trazendo para o centro do ringue o onipresente José Dirceu, ícone de uma ala da esquerda petista que pretendia, nas palavras de um de seus mais importantes seguidores, o presidente do PT, Rui Falcão, usar a CPI para denunciar “a farsa do mensalão”.
Todas as indicações são no sentido de que, mesmo antes de se conseguir montar as representações partidárias para compor a CPI, as dissensões na base aliada servirão de pano de fundo da comissão, em torno da qual o governo só terá maioria conjuntural, dependendo de quem estiver no alvo naquele justo momento.
Haverá ocasiões em que o PMDB estará ao lado das oposições para deixar o PT em maus lençóis, haverá outros em que um pequeno partido da base aliada poderá trair o governo, para se vingar de alguma ação pretérita ou para se cacifar para negociações futuras.
Nascida da sede de vingança do ex-presidente Lula contra o governador tucano de Goiás, Marconi Perillo, uma CPI de amplo espectro como esta dará oportunidade a todos de tentar apanhar seus desafetos em algum “malfeito”.
Pegue-se o caso da construtora Delta, que, assim como seu parceiro Carlinhos Cachoeira, tem obras em praticamente todos os estados brasileiros, acima dos partidos, tendo como objetivo apenas o lucro imediato. Como expô-la ao escrutínio da CPI exporá também governadores e políticos de diversos calibres e siglas partidárias, dificilmente será possível protegê-la, e sobrará para todos os lados.
Essa briga de foice no escuro, sem uma organização clara, pode, afinal, ser boa para a cidadania, pois apenas os que não estão fazendo militância política não têm nada a perder com ela.
Por uma dessas conjunções de forças que o destino às vezes arma, estamos entrando num momento, a partir de hoje, em que o Poder Judiciário será comandado por dois ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que já deram mostras, pelos seus votos e posicionamentos anteriores, de que têm a mesma percepção sobre a necessidade de reforçar a ética nas relações políticas e sociais: a ministra Cármem Lúcia assume o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e o ministro Carlos Ayres Britto, o Supremo Tribunal Federal.
Como a Lei da Ficha Limpa tem uma nítida correlação com o julgamento do mensalão, o empenho dos dois será para que o processo entre em pauta a tempo de deixar livre o caminho para a realização das eleições sem questões jurídicas pendentes.
O novo presidente do STF tem até novembro para colocar em julgamento o processo do mensalão, pois naquele mês se aposentará por ter atingido a idade máxima. Por isso ele tem deixado claro nas entrevistas dos últimos dias que fará tudo para que o término do julgamento ocorra até 6 de julho, data em que o processo para as eleições municipais começa oficialmente.
No entanto, o que parecia uma data-limite transformou-se apenas em uma “data ideal”, pois o ministro Ayres Britto deixou claro que o julgamento ocorrerá mesmo que concomitantemente ao processo eleitoral.
O ministro Marco Aurélio Mello, que assumirá a vice-presidência do Tribunal Superior Eleitoral, também não vê motivos para que a eleição impeça o julgamento, pois “não estamos engajados em política partidária”. Nem mesmo a aposentadoria de um dos membros em meio ao julgamento seria causa de interrupção, considera Marco Aurélio Mello, pois o voto de Minerva do presidente pode decidir eventual empate.
Essa questão surge quando se sabe que o ministro Cezar Peluso se aposentará em setembro, e há quem considere que um processo tão delicado politicamente como o mensalão só poderia ser julgado com os 11 ministros presentes.
O ministro Marco Aurélio Mello só dista da tendência geral quando considera disparatada a ideia de usar o recesso de julho, se necessário, para realizar o julgamento.
O ministro Ricardo Lewandowski, que é o responsável não apenas pelo voto do revisor no mensalão, mas também está com o processo do envolvimento do senador Demóstenes Torres (sem partido-GO) com a máfia do bicheiro Carlinhos Cachoeira, parece já ter entendido a ansiedade da opinião pública e promete dar seu voto em breve.
O ambiente político desencadeado pela convocação da CPI, em vez de neutralizar o julgamento do mensalão, está estimulando o anseio da sociedade pela punição dos responsáveis pela corrupção, venha de onde vier.
O Globo, 19/4/2012