A retomada da retórica moderada do presidente Bolsonaro no seu pronunciamento de ontem à noite não é uma garantia de que o bom senso permanecerá prevalecendo, mas dá um fôlego para o verdadeiro objetivo, que é o combate ao Covid-19 dentro de nossas possibilidades de país emergente e em grave situação financeira.
Ainda mais que o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta dá sinais públicos de querer, de sua parte, não melindrar seu chefe, garantindo que é “Jair Messias Bolsonaro quem comanda esse time”. Além dos aspectos emocionais dessa disputa anacrônica, no entanto, há questões de fundo importantes, como o debate sobre o uso de cloroquina.
A prova de que a retórica moderada nem sempre reflete posições sensatas, ao levar para um pronunciamento oficial à Nação a ideia de que a cloroquina pode salvar milhares de vida, o presidente Bolsonaro mais uma vez interfere na condução da politica de saúde pública ditada pelos organismos internacionais, seguida pelo ministério da Saúde.
O importante no momento é não politizar o Covid-19, como disse o diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS) Tedrosn Ghebreyesus sobre a ameaça do presidente dos Estados Unidos Donaldo Trump de parar de contribuir financeiramente com a OMS, pois o organismo teria se tornado sinocêntrico, dando mais importância às informações vindas da China.
Trump, em tuíte, insinuou que a OMS, ao desaconselhar fechar o país à China no início da crise, quando ainda não havia sido declarada uma pandemia, teria segundas intenções. Da mesma maneira, a politização do combate ao novo coronavírus permitiu que o próprio Trump, coadjuvado pelo presidente brasileiro, fizesse durante muito tempo propaganda da cloroquina como um remédio milagroso, sendo que Bolsonaro chegou a levar para uma conferência virtual do G-20 caixas do remédio, quando ainda não há comprovação oficial da eficácia do medicamento.
Já há um consenso de que o uso em casos graves nos hospitais é permitido, mesmo sem confirmação científica. Como todos estão usando a cloroquina, fica difícil saber o alcance de sua eficiência, pois pode ser acompanhada de vários outros medicamentos, e em diversas dosagens. O importante é que não é possível ainda anunciar a cloroquina como o caminho para a cura, e torna-se irresponsável essa tentativa de levar à opinião pública uma solução que não existe, como Bolsonaro fez ontem em seu pronunciamento.
O desafio feito aos médicos David Uip e Roberto Kalil Filho pelo próprio presidente através do WhatsApp é exemplar do que não deve ser feito, uma disputa política com o governador de São Paulo João Doria que não leva a lugar nenhum. David Uip, coordenador da equipe de combate ao coronavírus em São Paulo, recusou-se a confirmar se foi usada a cloroquina em seu tratamento, enquanto Kalil Filho admitiu.
Este último, inadvertida ou propositalmente, ao cair na armadilha de Bolsonaro, foi usado pelo presidente em seu pronunciamento como avalista do uso da cloroquina em todos os estágios da doença. A politização dessa situação inusitada, que a ninguém dá, até o momento, o direito de ter certezas absolutas, só faz agravar o quadro geral.
Parece não haver clareza para o presidente do que nos espera pela frente, se compararmos nosso quadro atual com o dos países que já passaram, aparentemente, pelo pico da crise. Ainda estamos em meio à subida dos gráficos, e já temos cidades como Manaus, em região afastada dos grandes centros do sudeste mais afetados até o momento, com seu esquema de saúde colapsado pela amplitude da crise.
Bolsonaro, ao falar na televisão, que a cloroquina pode salvar milhares de vidas, está jogando um lance perigoso. Vendendo ilusões, pretende aparecer como o salvador da pátria. E pobre do país que precisa de salvadores da pátria, parafraseando Brecht. Favorável ao uso do medicamento nos momentos iniciais da doença, como alguns, de maneira minoritária, defendem, Bolsonaro atropelou a política oficial e deu falsas esperanças a milhares de brasileiros que ainda o levam a sério.