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Uns tempos estranhos

 

Os tempos que estamos vivendo podem favorecer que situações impensáveis numa democracia sejam normalizadas, como se fizessem parte de um diálogo saudável. Não há nada de saudável, no entanto, no envolvimento de militares no debate das urnas eletrônicas ou na declaração do ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, de que as Forças Armadas continuam “em estado de permanente prontidão” para o cumprimento de suas missões constitucionais. Se continuam, é porque já estão “de prontidão”, o que é preocupante e inexplicável.

Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e os líderes políticos estão caindo numa armadilha institucional quando colocam os militares em condições de igualdade com os Três Poderes da República nessas conversações.

O presidente do Supremo, ministro Luiz Fux, em discurso ontem, provavelmente decepcionado com a nota oficial do Ministério da Defesa, referiu-se ao Legislativo quando disse que estavam juntos na defesa da democracia. Não colocou o Executivo nessa conta, muito menos os militares, cujo comportamento institucional pressupõe que estejam a serviço dos Três Poderes, e não apenas de um deles, no caso o Executivo comandado pelo presidente Bolsonaro.

O elogio da liberdade de imprensa em seu dia, feito também por outros ministros do STF, tem a ver com essa disputa pela defesa da democracia. Outro ministro do Supremo, Edson Fachin, que preside o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), afirmou que não se pode transigir com ameaças à democracia, nem permitir a corrosão da autoridade do Judiciário.

A nota do Ministério da Defesa sobre o encontro do ministro Paulo Sérgio com Fux no mínimo causa estranheza ao falar em “prontidão”, situação que se enquadra quando há guerra, sublevação, questão interna de segurança. Não consta que exista nada disso no momento, embora seja permitido temer que os ataques do presidente Jair Bolsonaro às urnas eletrônicas possam causar desestabilização política no país.

Certamente não era a isso que se referia o ministro da Defesa quando falou em “prontidão”, palavra que tem uma conotação militar de situação anormal — e não estava naquela nota à toa. Se o Exército foi convidado de boa-fé a participar de uma comissão de transparência das urnas, a ideia é de colaboração, não de criar mais tumulto ao fazer 88 ressalvas ao sistema, muitas das quais já foram sobejamente explicadas pelo TSE.

Um sistema que funciona há anos sem ser contestado não pode ter quase uma centena de falhas. Mais grave, as contestações refletem basicamente as desconfianças de Bolsonaro, que faz questão de dizer que, como chefe das Forças Armadas, é dele a orientação sobre as urnas. Uma das propostas é criar uma apuração paralela. Outra, na hipótese de algum problema técnico com a votação, é criar um esquema de contagem manual. Parece uma tentativa de ressuscitar a proposta do voto impresso já devidamente rejeitada em votação no Congresso.

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Quando o ministro Luís Roberto Barroso falou numa palestra on-line com alunos de uma universidade alemã que os militares estavam sendo orientados a contestar as urnas eletrônicas, criou uma crise com o Ministério da Defesa, e critiquei-o por ter tocado num assunto delicado em uma universidade estrangeira. Vê-se agora que ele tinha razões para alertar sobre essa interferência, embora eu continue achando que o momento não foi adequado.

Barroso, claro, estava realmente refletindo essa sensação de desconforto diante do comportamento do representante dos militares que ele, Barroso, pôs na comissão de transparência procurando uma aproximação institucional de boa-fé. Foi um erro político, porque favoreceu que os militares endossassem as desconfianças do presidente.

Fux está sendo criticado internamente no STF por ter marcado reunião com o ministro da Defesa. Entendo a posição dele e também do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Preocupados com a situação, sentiram necessidade de trocar ideias com outras instituições e autoridades. Pacheco também teve encontro com o presidente do Superior Tribunal Militar (STM), que havia desdenhado as denúncias de tortura a presos políticos na ditadura militar. Em tempos normais, militares não teriam nada a ver com o que acontece no país na área política, pois a disputa política não pode ser transformada em questão de segurança nacional. Mas estamos em tempos estranhos.

O Globo, 05/05/2022