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Universidade Viva

 

Há um clima de restauração no ar, um misto de vingança e ressentimento de certos chacais da política. Assiste-se a uma perigosa guinada à direita, em várias frentes, que ameaça um conjunto de conquistas democráticas que não se limitam à agenda de um partido, mas a uma legítima demanda republicana, conquistada desde a década de 1990. Refiro-me às figuras agressivas, ultramontanas do Congresso, que se batem a favor da cura gay, contrários à lei da palmada e a um repertório de atitudes que seriam de fato avançadas se vivêssemos no século XVIII.

O debate sobre vida, morte e ressureição do Ministério da Cultura não deixa dúvidas quanto ao nível da discussão e ao viés fundamentalista que tomou. Vozes de ódio contra a discriminação positiva na ênfase às religiões africanas, aos direitos dos quilombolas, à demarcação das terras indígenas, à liberdade de orientação sexual. Há quem não suporte a defesa de um país multiétnico, a convivência de religiões, culturas que se respeitem mutuamente e todo um programa que contemple a diversidade. Não se divide um país pelo simples fato de se estenderem as políticas públicas a todos, pois isso está assegurado na Constituição. Ou haverá porventura níveis de cidadania, estamentos que definam quem é mais ou menos brasileiro, quem seria mais sujeito de direito do que outros?  Gostem ou não, isso tem um nome que a santa aliança não suporta: democracia.

Os insaciáveis parlamentares-teólogos ensaiam com histeria os retrocessos possíveis na promoção do pensamento único. Tome-se como exemplo a ideia da CPI da Lei Rouanet e a proibição de se discutir política em sala de aula, dentre outras “delícias intelectuais”, em flagrante oposição com uma república consolidada.  

Nessa linha de pensamento zero, temo pelo descaso com a Universidade pública, como tenho lido nas entrelinhas do governo provisório. E aqui dispara o alarme e a indignação.

A Universidade pública tem sido um arquipélago de resistência ao pensamento único, protagonista de uma verdadeira cultura democrática, como vejo com meus colegas, alunos e funcionários da UFRJ. Não há assunto que não se possa discutir, não há qualquer espécie de tabu ou tema proscrito.  A Universidade tem o dever de formar cidadãos, de prepará-los para uma cultura da paz, com o respeito profundo pela multiplicidade. Se a Universidade brasileira não guardasse com zelo esse horizonte todo seu, na liberdade de ler o mundo como um texto escrito por muitas vozes, seria como, digamos, uma repartição ou franchising cultural, uma agência de chacais e não um laboratório de conhecimento, casa em que se promove o conflito de interpretações, onde os únicos demônios a serem esconjurados são o da imposição e do ódio.   

Portanto, não pensem em ferir a autonomia da Universidade, seu núcleo e sua base, porque não estamos dispostos a abrir mão do que é legítimo e constitui o que de mais caro conquistamos num país de frágeis instituições.    

O Globo, 01/06/2016