A Assembléia Legislativa do RS teve um presidente, Carlos Santos, que era um grande deputado e que era negro. Como presidente da Assembléia, tinha direito a segurança: um brigadiano acompanhava-o sempre. Conta-se que um dia de manhã, muito cedo, Carlos Santos precisou registrar uma ocorrência na delegacia próxima à sua casa. Para lá se dirigiu, sempre escoltado pelo policial. Quando entrou, o delegado, que estava sentado à mesa, semi-adormecido, abriu os olhos e, não reconhecendo o deputado, resmungou: "Pô, negão, a essa hora da manhã tu já estás criando confusão!"
É claro que o delegado só disse isso porque não estava completamente acordado. Ou seja: falou a voz de seu inconsciente, aquela parte de nossa mente que alberga fantasias, superstições, preconceitos. O lugar em que nasce o racismo mais visceral, mais primitivo.
Por isso é importante que haja um Dia da Consciência Negra. Na verdade, é um dia de dupla conscientização. Em primeiro lugar significa reconhecer a brutal opressão de que os negros foram, e em certa medida ainda o são, vítimas. Este reconhecimento é fundamental: representa o primeiro passo para a mudança, para a correção dos erros e dos crimes do passado. Mas não é um reconhecimento pacífico; a capacidade de escamotear a evidência histórica é muito maior do que parece, e a negação do Holocausto judaico mostra-o bem. Negros e brancos precisam dar-se conta do que significou, exatamente, a escravatura. Não é simplesmente a vitimização dos negros pelos brancos; o comércio de escravos africanos era feito em geral por europeus, mas com a freqüente colaboração de reis e de chefes tribais do continente africano. Por outro lado, muitos brancos lutaram contra a escravatura, como foi o caso de Castro Alves. A cor da pele aí não serve como divisor de águas. Ainda bem, não é? Ainda bem.
Conscientização é o primeiro passo para o processo de mudança. Processo penoso, complexo, que exige a participação de todos. Uma carga pesada destas não desaparece simplesmente com a passagem do tempo. Estamos falando de um grupo humano que precisa de ajuda e, mais, que se beneficiará desta ajuda, apesar dos tolos argumentos segundo o qual negros seria portadores de uma inferioridade intelectual congênita. A política de ação afirmativa, adotada nos Estados Unidos há décadas, funcionou e funciona; dá testemunho disto uma classe média negra que tem muita gente de talento em várias áreas e faz valer suas opiniões e posições. Gente que tomou consciência de sua história, de sua cultura e, sobretudo, de seus direitos.
Consciência. Grande palavra. Disso deve ter-se dado conta o delegado que atendeu o deputado Carlos Santos quando, por fim, acordou por completo.
Zero Hora (RS) 20/11/2007