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Uma bipolaridade brasileira

 

Nesta época do ano, Porto Alegre, à semelhança do que acontece com muitas cidades brasileiras, se esvazia: vai todo o mundo para a praia. Só ficam os autoproclamados membros da Sapa, Sociedade dos Amigos de Porto Alegre, êmula das sociedades existentes nas praias do litoral gaúcho: a Sociedade dos Amigos de Tramandaí, a Sociedade dos Amigos de Torres, e assim por diante. Os afiliados da Sapa podem contar com um trânsito ameno, com restaurantes nunca lotados, com ausência de filas nos cinemas (mas, em compensação, precisam enfrentar um calor infernal. Nem tudo é perfeito).


O Brasil contemporâneo nasceu na praia. Não poderia ser diferente, já que os colonizadores portugueses chegaram pelo oceano. E no litoral ficaram, levando Frei Vicente do Salvador, o autor da primeira História do Brasil (1627), a censurá-los por não adentrarem o território brasileiro: “Sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se de as andar arranhando ao longo do mar, como caranguejos”. O caranguejo como metáfora certamente não tem a aprovação dos veranistas e, realmente, corresponde pouco a, por exemplo, uma bela banhista em seu biquíni. Mas, de fato, o interior do Brasil durante séculos foi escassamente povoado. Não por outra razão falou o presidente Juscelino Kubitschek na “solidão do Planalto Central”.


Estas coisas refletem uma bipolaridade brasileira, que é histórica, é geográfica, é econômica e é também psicológica: o litoral e o interior, o mar e o sertão, correspondem a duas facetas do nosso psiquismo como grupo humano. O litoral é alegre, é esfuziante, é trepidante; o litoral tende para o maníaco. O interior — o sertão, o planalto — são quietos, ensimesmados. Minas é um exemplo disso. Diz-se que Minas trabalha em silêncio, o que pode ser um sinal de esperteza (análogo à história do mineiro que come quieto), mas será que não há nisso um sinal de melancolia, Carlos Drummond de Andrade? A melancolia que nos faz perguntar, angustiados, “E agora, José?”.

 

Os litorâneos não se queixam da bipolaridade. De fato, a maioria das pessoas prefere a alegria maníaca à tristeza depressiva, ainda que ambas possam ser diferentes facetas de uma mesma realidade psíquica; mas, convenhamos, se é para ter problemas, muito melhor tê-los à beira da praia: areia, mar azul, água de coco. Os interioranos é que não se conformam com isso, e essa desconformidade se traduziu muito bem na profecia do Antonio Conselheiro que Euclides da Cunha evocou em Os sertões: “Em 1896, hão de rebanhos mil correr da praia para o sertão; então o sertão virará praia e a praia virará sertão”. Os “rebanhos mil”, numa época em que a pecuária dominava a economia (ainda domina, mas menos), era uma promessa de riqueza. Maluco o Conselheiro podia ser, mas burro não era. Sabia como atrair fiéis, e não foi por nada que Canudos chegou a ter 25 mil habitantes, tornando-se a segunda cidade da Bahia em população, atrás apenas de Salvador. Juscelino, por sua vez, usou a habilidade política para tornar-se um dos presidentes mais estimados na história desse país. E o que disse ele sobre o Planalto Central? Garantiu que “esta solidão em que breve se transformará em cerébro das mais altas decisões nacionais”, profecia que, esta sim, se revelou verdadeira.


O sertão não virou mar, mas é fonte de riqueza. Em novembro, e comparada ao mês anterior, a produção industrial cresceu 11,6% em Goiás, a mais alta de 14 regiões pesquisadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; a média nacional apresentou retração de 0,2%.


Não é só em caranguejos que o Brasil é rico. E a bipolaridade nacional às vezes mostra aspectos surpreendentes.


Correio Braziliense, 12/1/2010