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Um antipai?

 

Não sabemos que papel Joe Jackson terá no velório do filho, se é que terá algum. Do testamento, pelo menos, ele foi excluído por Michael. O que, segundo os relatos, não é de admirar. Joe Jackson estava muito longe de ser o pai ideal. Introduziu o filho, ainda criança, à música, mas o fez com brutalidade e movido por seus próprios interesses. Seu comportamento, nos dias que se seguiram à morte do cantor, foi estranho, para dizer o mínimo. Ali estava aquele homem já idoso, mas vestido da maneira extravagantemente juvenil, caminhando com passo de urubu malandro, exibindo um sorrisinho astucioso e, pior de tudo, aproveitando os inesperados 15 minutos de fama para fazer propaganda de um selo musical que pretende lançar.


Joe Jackson não chega a ser uma exceção. O pai de Mozart, Leopold, fez a mesma coisa com o filho, e com igual êxito: aos seis anos, Wolfgang Amadeus já era um pianista famoso, que tocava para príncipes e dignitários de toda a Europa. O resultado é que nunca chegou a amadurecer, o que, claro, não impediu que produzisse uma obra impressionante: talento nada tem a ver com equilíbrio emocional.


Ah, sim, e o contrário também acontece: pais que reprimem ou ignoram o talento dos filhos. O escritor Franz Kafka teve, desde a infância, uma relação conflituosa com o pai, Hermann Kafka, próspero empresário, um homem grandalhão e arrogante que, com sua simples presença, intimidava o franzino rapaz. Kafka não dependia dele – fez carreira como advogado –, mas atormentava-o o desprezo com que Hermann encarava sua literatura, coisa que aparece muito bem na famosa Carta ao Pai, um pungente testemunho do conflito pai-filho. Conta-nos Kafka que, quando um de seus livros foi lançado, apressou-se a levar um exemplar a Hermann. O pai, que naquele momento jogava cartas com amigos, não deu a mínima ao jovem autor: “Deixa aí na mesa, depois eu olho”.


Diante dessas deprimentes revelações, nossa primeira reação é de fúria, de revolta. Mas às vezes esquecemos que paternidade não é algo que resulte automaticamente da geração de filhos. Tem gente que simplesmente não consegue assumir a condição de pai (ou de mãe). Falta a essas pessoas a maturidade, a capacidade de introspecção necessárias para cuidar de uma criança. É possível que, sozinho, no silêncio de seu quarto, Joe Jackson tenha derramado lágrimas por Michael, e é possível que o mesmo tenha acontecido com o pai de Mozart. Em relação a Hermann Kafka, temos uma outra evidência, tão intrigante quanto potencialmente comovente. Uma vez circulou pelo Brasil uma exposição sobre Kafka, que, em Porto Alegre, foi exibida no Instituto Goethe. Entre as muitas fotos que ali estavam, havia duas de Hermann. A primeira tirada quando Franz ainda era jovem; vemos nela o homem descrito na Carta ao Pai, um tipo robusto, seguro de si. A segunda, porém, é do período que se seguiu à morte do escritor. E a metamorfose (para usar o termo que dá título a uma obra famosa de Franz Kafka) é impressionante. O que temos ali é um ancião alquebrado e triste. Seria essa transformação a forma, obviamente inconsciente, pela qual Hermann expressou sua dor e seu afeto pelo filho?


Não sabemos. Mas não nos custa dar às pessoas o benefício da dúvida. Ao menos para que possamos preservar nossa esperança na existência de um mundo em que pais e filhos sonhem os mesmos sonhos, e percorram os mesmos caminhos – até que a morte os separe.


É o sepultamento de um ser humano ou é uma festa de cambistas e de sorteados?


Zero Hora (RS), 7/7/2009