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Ubaldo, o homem que sabia a verdade

 

Já disse, mais de uma vez, que João Ubaldo Ribeiro foi um presente que Glauber Rocha me deu. Quando soube que eu ia à Bahia pela primeira vez, para apresentar “A grande cidade”, meu segundo longa-metragem, num festival local, Glauber decretou formalmente que eu não veria ninguém na cidade antes de conhecer e encontrar Ubaldo. Pensando bem, não era apenas um presente que Glauber queria me dar. Era também uma ordem, como era seu costume fazer com todos nós.

Como era meu costume fazer com ele, cumpri ao pé da letra a ordem de Glauber. No dia seguinte à minha chegada, a cidade se preparava febril para o carnaval quando deixei o hotel e fui à redação do jornal em que Ubaldo trabalhava, conforme Glauber pusera num pedaço de papel, com data e hora, para que eu não me esquecesse.

Para minha surpresa, Ubaldo não era um sedutor afável como os outros baianos dessa geração que eu havia conhecido. Me perturbava ter de falar mais do que ele e obter respostas curtas que pareciam conter uma ironia que eu não era capaz de entender. Ubaldo tinha que voltar para a redação e exagerava, como se tudo no jornal dependesse dele. Eu não podia ter argumento para mantê-lo a meu lado.

Como no romance de Graciliano Ramos, conheci Ubaldo mas não o conheci de uma vez. Foram necessários fins de tarde indo aonde ele me mandava ir, descobrir de onde vinha sua capacidade de explicar o que a gente precisava, sem lhe pedir nada, que fosse explicado. Nossa amizade se desenvolveria depois, no crescente caos material e espiritual do Rio de Janeiro, para onde se mudara. Hoje, posso passar o resto de minha vida falando e escrevendo sobre ele. Embora, como todo personagem de romance que vale a pena, ainda não saiba exatamente quem era João Ubaldo.

Já disse também que adoro a epígrafe de “Viva o povo brasileiro”, esse monumento da literatura em língua portuguesa: “O segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias.” Uma versão solar da ideia de Gilles Deleuze a propósito de Proust: não existe a verdade, só interpretações. Mais adiante, ainda em “Viva o povo brasileiro”, ele se explica com clareza:

“Saber da verdade e querer impô-la aos outros, num mundo onde tudo muda e tudo se encobre por toda sorte de aparências, é uma grave espécie de loucura.”

Há pessoas que, quando morrem, nos tiram pelo menos um pouco do gosto pela vida. Ubaldo foi uma delas. Fico esperando que um texto seu, um excerto qualquer, me diga o porquê. Quando fui informado pela direção do jornal que minha coluna passaria a ser publicada no domingo, como foi a dele até a semana de sua morte, tive a impressão de vê-lo a meu lado rindo muito, nem sei direito por quê. No próximo delírio sobre o assunto, vou pedir a Ubaldo que me traga com ele Glauber Rocha, para que eu possa explicar um pouco quem eu sou. Só um pouco, porque muito também não sei.

O Brasil não gosta de seu passado, e sempre achamos que não temos direito a futuro nenhum. Para disfarçar, mentimos alegremente sobre o que somos e o que queremos ser. Nunca fomos o paraíso anunciado, enganamos todo mundo com pandeiros, palmeiras e sabiás, com nossos carnavais. Subestimado durante quase todo o seu primeiro século de vida, o Brasil foi inventado por caçadores de homens (que escravizavam os índios), um exército de exterminadores (que saqueavam a terra), um padre gago (Manoel da Nóbrega) e outro meio cínico (José de Anchieta), além de famílias como os Sá e os Souza. Como o que interessa é o presente, e este é a consequência do passado concreto e do futuro que sonhamos, ainda é preciso perder as ilusões para entender o Brasil de hoje. Os pensadores ocidentais sempre trataram nossa diferença como a ausência de alguma coisa que eles reconhecem e cultivam como civilização. Mas é justamente dessa ausência que podemos construir o único Brasil possível, o Brasil que vale a pena. Quem sabe então poderemos ser enfim felizes de verdade.

O Globo, 07/02/2021