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Tão fake quanto real

 

Quando o ex-ministro José Dirceu advertiu recentemente que o PT deveria atentar para o fato de que a direita brasileira está organizada e atuante, enquanto a esquerda se perde em divisões internas contra a política econômica e se afasta dos interesses diretos do cotidiano dos cidadãos, falava com a experiência de quem conhece o PT por dentro, e com a inegável liderança histórica esquerdista, goste-se dele ou não.

Ao mesmo tempo em que volta a vocalizar seus pensamentos, Dirceu busca uma saída para se ver livre das condenações que ainda cumpre em regime aberto. Para se ter uma ideia de como é viável essa aposta, não há mais nenhum político preso pelo mensalão ou pelo petrolão. Todos, ou foram anistiados pelo STF, ou tiveram suas penas anuladas por supostos erros técnicos, ou por prescrição. Antes do mensalão, somente um político havia sido condenado pelo Supremo em toda sua história. Hoje, todos os condenados estão soltos.

O empenho da gestão Lula em reescrever a história recente, trazer o passado para o presente, repetir os mesmos erros para tentar resultados diferentes, parece uma síndrome, que pode levar sua gestão a exacerbar a polarização política. Talvez seja essa mesmo a tentativa, de mostrar aos adversários que Lula é indestrutível. Ou talvez a necessidade do presidente de ver compensadas as injustiças de que se sente vítima.

Seja como for, o que ele está conseguindo é, construindo uma história oficial em museus, discursos e decisões que nos trazem de volta a um passado nada glorioso, fixar o espaço de seus adversários, sem ampliar o próprio. A resiliência de seus apoiadores, comparável aos de Bolsonaro, pode levar a uma situação distinta da de 2022, quando os eleitores não comprometidos não tiveram escolha.

Estava muito fresca na memória dos cidadãos independentes a tentativa de golpe permanente do então presidente. Lula fez uma campanha de governo de aliança política ampla, de defesa da democracia ameaçada, conseguindo colocar em segundo plano a lembrança dos casos de corrupção do PT. A campanha de 2026, ao contrário, com o governo fazendo questão de voltar ao passado para recriá-lo ao gosto de seus seguidores, esquecendo-se dos que votaram em Lula a contragosto, pode fazer com que ambos os candidatos, Lula e Bolsonaro, abram espaço para contendores menos comprometidos com os dois lados do espectro político.

Já há setores petistas, a exemplo de José Dirceu, que enxergam essa brecha que está sendo aberta na polarização, e se assustam com a possibilidade de um candidato da centro-direita, ou da direita tradicional, ter mais chance do que um extremista apoiado por Bolsonaro.

Caberia a Lula encaminhar-se mais para o centro político, e tornar realidade fática um governo de união nacional que não saiu do papel. Em seu lugar, formou-se um governo no qual o Centrão comanda a maioria, e o PT, minoritário, tenta reescrever a história, conseguindo fazer com o eleitorado de direita tenha razões para acirrar as críticas. Bolsonaro tentou mascarar sua submissão ao Centrão alegando que sempre fizera parte do grupo. Lula, na mesma situação, resolveu que o Centrão nunca existiu, e afirma que negocia individualmente com os partidos.

Ao dizer que a Operação Lava-Jato foi uma “mancomunação” de juízes e promotores com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, Lula poderia ser enquadrado na investigação de fake news coordenada pelo ministro do Supremo Alexandre de Moraes. A Petrobras admitiu sua culpa na cadeia de corrupção e pagou bilhões de dólares aos Estados Unidos como multa, por ser uma empresa com ações na Bolsa de Nova Iorque.

Navegando nesse mar de contradições, Lula tenta sobreviver a uma situação política muito diferente da que conviveu nos dois primeiros mandatos. Um mundo em que a deep fake vai atuar com tanto vigor na política que já não se saberá mais distinguir a realidade. O caso do filho de um ministro de tribunal superior é exemplar: parecia fake, mas era incrivelmente real. Tão real que uma juíza resolveu proteger seu par censurando o vídeo.

O Globo, 21/01/2024