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Sem tranquilidade

 

Tendo ainda pela frente mais alguns meses do primeiro mandato, e outros quatro anos de um segundo, a presidente Dilma não conseguiu ainda sair das cordas, apesar de vitoriosa nas urnas. Para seu azar, vai terminar o ano com um crescimento pífio, talvez abaixo de 0,5%, e engatar outro ano de economia débil, faça ou não as mudanças necessárias.

Mesmo se as fizer, vai aprofundar a recessão da economia e terá que conviver com pelo menos mais um ano ou dois de crise para tentar chegar ao final do mandato com a situação mais ou menos controlada. A herança maldita que herdou de si mesma afetará não apenas o seu governo, mas os projetos futuros de Lula e do PT, especialmente se Dilma quiser dobrar a aposta em seus métodos.

Se por um lado não tem o que perder nesse segundo mandato, pois não alimenta nenhum projeto político futuro, a presidente reeleita terá que lidar com as angústias de seu partido de adoção e, sobretudo, com um Lula disposto a mudar o jogo para não afundar o projeto de poder que tanto alimenta, com ou sem ele no governo.
 
A insistência de Lula para que Dilma coloque no ministério da Fazenda Henrique Meirelles ou o presidente do Bradesco Luiz Trabuco mostra que o ex-presidente sabe exatamente o tamanho da encrenca em que o governo petista está metido, e sabe também o caminho a ser seguido, como fez em 2002 ao ser eleito pela primeira vez.
 
Como Dilma não é Lula, nem na capacidade de negociação nem na arte da dissimulação, é improvável que nomeie para a Fazenda alguém com luz própria. Lula terá então a possibilidade de se afastar de sua protegida com boas razões para criticá-la, surgindo como uma alternativa em 2018 para o PT.

A presidente Dilma terá que tourear nesse segundo mandato um Congresso muito mais inquieto, até mesmo pelas ameaças que as delações premiadas estão produzindo, com uma base aliada muito mais infiel, e uma oposição reforçada pelas urnas. Pela primeira vez em 12 anos o PT terá uma oposição sistemática ao seu governo, sem receio de ser jogada contra “a vontade popular”. Simplesmente por que essa oposição atual representa quase tantos eleitores quantos os que votaram na continuidade do governo Dilma.

O maior aliado do PT no governo é o PMDB, também seu pior adversário. Saído das urnas com boa parte de seus quadros trabalhando com a oposição em diversos estados do país, o PMDB chega ao segundo mandato disposto a assumir o papel de fiel da balança, colocando-se mais como um contraponto do que um aliado do PT.

Lula, como sempre, atua dialeticamente, tentando levar a economia para o campo ortodoxo, mas propondo uma guinada à esquerda na política, inclusive para suprir uma eventual falta dos partidos de centro-direita que, mesmo na base aliada, já sentem o vento soprar em outra direção.

O PMDB já anunciou que apresentará sua própria versão da reforma política, o que prenuncia um embate dentro da base aliada em torno de temas fundamentais, como financiamento público de campanha, constituinte exclusiva, democratização da mídia, conselhos populares, todos temas caros aos petistas que encontram no PMDB forte resistência.

Por isso não se sabe a quem a presidente Dilma enviou uma mensagem cifrada em sua fala de ontem, quando afirmou quer “há de saber ganhar, há de saber perder. A atitude do ganhador não pode ser de soberba, nem pretensão de ser o último grito em matéria de visão política. Saber perder é saber em que ponto você está e não significa que vamos construir um muro no Brasil".
 
Palavras ponderadas de quem vê dificuldades pela frente. Já o PT, num documento de sua Executiva Nacional, deixou de lado as sutilezas para abrir o jogo: “É urgente construir hegemonia na sociedade, promover reformas estruturais, com destaque para a reforma política e a democratização da mídia” (...) “Para transformar o Brasil, é preciso combinar ação institucional, mobilização social e revolução cultural”.

São palavras de um partido que quer retomar seu viés revolucionário, depois do susto de ser quase derrotado nas eleições presidenciais. Diante da disposição da oposição de não dar trégua aos petistas, no Congresso e nas ruas, pode-se prever os “tempos interessantes” da maldição atribuída a Confúcio, em que os riscos e os sofrimentos não cessam, impedindo a tranquilidade.

O Globo, 06/11/2014