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Ressignificação brasileira

 

Vamos arregaçar as mangas e começar a trabalhar na direção que essas meninas nos propõem para o Brasil

O “Fantástico” botou no ar uma “entrevista íntima” de Rosângela Silva, nossa nova primeira-dama, feita pela dupla de repórteres Poliana Abritta e Maju Coutinho. A carioca do Leblon e a negra de nossas tradições produziram um documento raro e indispensável da cultura política que torcemos para que esteja nascendo no Brasil, nesta fase alegre e iluminada de nosso país pós-bolsonarista.

Tendo nascido em 1940, só acompanhei de interessante na TV, nos jornais e nas revistas o papel de Ruth Cardoso enquanto primeira-dama do Brasil. Mais do que suas ideias era sua ação intelectual que nos fascinava a todos, sobretudo pelo seu caráter independente. Ela não dispensava sua cultura pessoal, mas a tinha sempre a serviço da cultura do Brasil, um país pelo qual se interessava como origem do que ela era para todos nós. E, acima de tudo, para ela mesma, para o que pensava e sonhava com tudo que servisse ao progresso intelectual da nação que ela tratava com tanto respeito e admiração.

Agora o presidente Lula traz a nosso conhecimento um outro tipo de primeira-dama, sua mulher, Janja. Uma brasileira que faz questão de reverenciar tudo o que sempre consideramos ou quisemos considerar como típico de nosso país, como parte de seu caráter sempre disfarçado por nossos políticos que desejam nos tratar como se fôssemos aquilo que eles pensam que seria melhor que fôssemos. Ou seja, rascunhos latino-americanos, tentativas de miniaturização de grandes lideranças euroamericanas reconhecidas internacionalmente.

Não quero saber se Rosângela se inspirou nas ideias cultas e apropriadas da senhora de um presidente americano ou se o que nos diz é inspirado em declarações de uma nobre francesa. Quero apenas que ela me diga o que sente diante do país que a colocou em lugar de finas escolhas, que ela me relate seu passado de jovem brasileira e seu presente comparado ao que viveu antes de se casar com o “primeiro senhor”. E é isso o que Janja me disse nessa primeira entrevista tão descontraída quanto necessária à nossa orientação.

Enquanto isso, recebemos a notícia desconcertante da morte de Isabel Salgado, a Isabel do Vôlei, vítima de uma gripe bacteriana que a tirou de nosso convívio em 24 horas. Com 62 anos idade, Isabel acabara de ser nomeada como parte do grupo dedicado ao esporte na equipe de transição de Lula. Isabel eu conheci pessoalmente e celebrava com ênfase sua nomeação. Ninguém de mais equilíbrio, ninguém de mais consciência, ninguém tinha mais do cargo que iria ocupar nessa transição para um novo país. Isabel era uma pessoa formidável, a mulher ideal para nos guiar nessa transição tão necessária.

Em sua primeira entrevista como primeira-dama, Janja nos diz, por exemplo, que Simone Tebet e Marina Silva são lideranças incontestes da mulher brasileira, em grande parte responsáveis pela vitória de Lula. Que uma das coisas que acha mais significativas em Lula é sua energia pessoal aos 77 aos de idade. Que no governo, se tiver espaço para isso, vai se dedicar ao enfrentamento da violência contra a mulher, à contenção do crescimento do racismo entre nós e à questão da alimentação popular. Em suma, trocar entre nós o “novo ódio pela tradição brasileira do afeto”. Rosângela Silva diz que seu sonho, enfim, é recuperar o afeto e a solidariedade entre os brasileiros. Ir buscar, onde a população a deixou abandonada, a solidariedade esquecida em benefício do ódio.

Ela quer, antes de tudo, contar com essa ressignificação dos valores que considera os mais brasileiros. Uma ressignificação em que o papel de Isabel viria a calhar. Vamos arregaçar as mangas e começar a trabalhar na direção que essas meninas nos propõem para o Brasil, nesses quatro anos de recuperação diante de nós mesmos. Com festa e tragédia, com alegria e tristeza, na celebração e na pena, faremos o que elas gostariam que fizéssemos.

O Globo, 20/11/2022