As versões dadas ao narrador e também protagonista das Memórias Póstumas de Brás Cubas são várias e chegam a desnortear o leitor dessa obra inesgotável de Machado de Assis. Três versões, pelo menos, vêm mostrando notável capacidade de resistência. Tento retomá-las na expectativa de perceber até onde poderiam captar aspectos significativos de um dos romances mais originais de nossa literatura.
Que me sirva de alavanca teórica esta premissa: em todo texto literário podem-se reconhecer três dimensões – a obra é construção, a obra é expressão, a obra é representação.
As Memórias Póstumas foram escritas em um estilo propositadamente livre. Machado quis inscrever-se na tradição de uma prosa conscientemente diversa dos modelos tradicionais. A sua confessa inspiração deve-se a Diderot, a Sterne, a Garret. E os eruditos remontam ao satírico e parodista Luciano de Samósata, cujos diálogos se encontraram na biblioteca do nosso bruxo.
Nessa ordem de filiações, Brás se dá como paradoxal defunto autor com todas as características de galhofa, arbítrio, metalinguagem e desenvolta interlocução com o leitor que essa forma comporta. Acompanhar as bizarrias de composição e elocução das Memórias é compenetrar-se do espírito lúdico que está espalhado por toda a sua escrita.
Da versão construtiva convém passar à leitura do texto como expressão. Dois intérpretes agudos do livro, Augusto Meyer, já em 1935, e José Guilherme Merquior, na década de 60, observaram que o tom geral das memórias de Brás, desde a apresentação do projeto autoral, não coincide com a pura e lúdica galhofa de Sterne, seu alegado modelo. O sentimento nuclear é amargo e áspero, vem tingido de melancolia, pois é vinho de outra natureza. Brinca com a própria morte.
Essa constatação levou Augusto Meyer, como tinha levado seu antecessor Alcides Maia, a aprofundar outros veios, mais inerentes ao pathos machadiano, veios de humor, de auto-análise, de autonegação, a fenomenologia do homem subterrâneo. Uma leitura existencial, portanto, rente ao tom e ao olhar do narrador, explorando suas cesuras internas, a força do destino e da natureza, tal como se dá na passagem do delírio, e a vertigem do nada no capítulo final das negativas. O estudo da expressão dialetiza a leitura formal, conservando e superando o seu teor descritivo.
Mas também essa leitura exige diferenciação. Augusto Meyer era um apaixonado leitor de Dostoievski e de Pirandello. Por isso alcançou ver
Tudo isso tem a ver com a corrente moderna da escrita como autoconsciência, que já não permite ao narrador contar ingenuamente, sem dobras, a própria biografia. Mas basta fixar-se no humano moderno, universalmente concebido? Não estaria faltando a essa visada a presença das coordenadas de espaço e tempo que definem a situação de histórica de Brás Cubas?
A particularidade vai ser dada pela leitura de Brás como tipo social, um rico e ocioso herdeiro vivendo no Brasil da primeira metade do século, com todos os efeitos dessa condição. Daí emerge o Brás brasileiro, alvo de enfoque sociológico, que vem de Astrojildo Pereira, ganha estatuto weberiano com Raymundo Faoro e se cristaliza na leitura de cadências luckacsianas de Roberto Schwarz. Literatura também é representação.
Proponho um entendimento do romance que não seja um agregado de pontos de vista. Creio que é necessária a contemplação isenta das três dimensões: a construtiva, a expressiva e a representativa. A densidade da obra favorece a hipótese de que essas versões não se excluem, mas se enriquecem reciprocamente e, pela via da crítica, impedem que qualquer das três leituras impere, virando totalizadora e canônica pela marginalização das demais.
O ideal, difícil de alcançar, é a arquicitada frase de Hegel, tão prezada por Marx: o concreto é o multiplamente determinado. Ou, enfrentando Aristóteles, o indivíduo é inefável, mas nossa obrigação é aproximarmo-nos o quando for possível de sua bela concretude.
Jornal do Brasil (RJ) 21/6/2006