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Quem somos (ou queremos ser)?

 

No Brasil, a ideia de modernismo, que só se consolidou em 1922, mudou nosso modo de pensar sobre nós mesmos. Não se tratava mais de procurar entre nós as melhores pistas de valores consagrados lá fora, mas de criar nossos próprios valores necessariamente distintos dos de “lá fora”.

Tratava-se de inventar uma nação que ainda não existia, a partir de costumes originais que sempre existiram, de uma linguagem inédita que nunca percebemos existir, de paisagens geográficas das quais mal nos orgulhávamos, de personagens e situações que só nós conhecíamos e, portanto, só nós sabíamos e podíamos torná-las uma narrativa com sentido.

O Brasil já começou a resolver a questão das incertezas de nosso futuro, garantindo a exibição dos filmes brasileiros, protegendo-os contra o massacre do mercado. Mas ainda falta muita coisa que já foi concluída em outros países com menos pressa econômica e cultural, e mais baixa qualidade de resultados.

Nossas melhores cabeças pensaram ou sonharam com esse projeto de Brasil para o século 21. Ele está no mito de nossa formação racial, a única indo-luso-africana em todo o planeta. Ele está no mito do país imenso e no milagre de ser um só desse tamanho todo, com uma só língua e costumes semelhantes. Ele está no mito da cordialidade com que nos acostumamos a nos autorreferir. Ele está no mito de nossa musicalidade, no samba e outras bossas. Ele está no humanismo de nossa melhor produção cultural. Ele está em nossa permanente esperança de sermos o futuro Ser Humano.

Do ponto de vista da democracia, só existe essa governabilidade, a outra será sempre uma espécie de chantagem exercida em nome de forças ocultas, sem identidade conhecida. Enquanto não encontrarem coisa melhor, é preciso se conformar com a beleza do voto garantindo o poder para o que a maioria deseja e o direito de manifestação livre da minoria, que daqui a quatro ou cinco anos terá outra oportunidade de se tornar maioria.

Tentamos encontrar em outros autores, tantos outros, uma resposta para aquele horror de nossa frustração, o fracasso objetivo do pensamento socialista vencido pela realidade, com o exemplo maior da União Soviética, berço de tudo. Não podíamos imaginar que não houvesse alternativa ao regime de exploração do homem pelo homem.

Os movimentos identitários partiam da defesa da diversidade, da defesa do outro. Hoje esses movimentos se transformaram em autopiedade socializados, cada uma dessas minorias desfaz daqueles outros líderes, pouco se importam com os outros, nem deixam que os outros se metam nos assuntos que não lhes “pertencem”. John Stuart Mill, iluminista inglês do século XIX, chamava a isso de “tirania da maioria”.

Em 1936, na Espanha, Millán-Astray, fundador da franquista Legião Espanhola, costumava interromper as manifestações de professores na Universidade de Madri com gritos que diziam: “Abaixo a inteligência, viva a morte!”. Quando tentou fazer isso com o grande poeta e filósofo dom Miguel de Unamuno, este lhe respondeu com curto discurso que terminava com uma declaração que se tornou universal e eterna: “Somos mais pais de nosso futuro do que filhos de nosso passado”.

Temos vivido um vendaval como essas de opiniões radicais e histéricas de todos os lados, que não têm nada a ver com o presente do país. Imagine só seu futuro!

Por mais que a gente tente mantê-la sob controle, a vida é feita sobretudo de acasos, eventos que não programamos e que podem chegar até nós por uma sucessão de acontecimentos pessoais ou por disposições políticas do lugar e do tempo em que estamos. Em política, isso acontece constantemente, e nem sempre podemos dar um jeito no acaso para que ele possa se acertar com nossos planos.

O Globo, 15/09/2024