Uma vez, fui a Brasilia para dar a palestra inaugural num evento literário promovido pela Secretaria de Cultura do DF. O governador Cristovam Buarque estava presente e, ao final, gentil como sempre, convidou-me para jantar. Antes, porém, ele tinha um compromisso: deveria comparecer à inauguração da representação diplomática da Autoridade Palestina no Brasil e sugeriu que eu o acompanhasse. Fomos.
A representação fora instalada numa grande casa situada no setor diplomático da capital. Quando lá chegamos, várias pessoas estavam reunidas na sala principal, e o governador foi saudado com entusiasmo.
Dirigindo-se ao público, e da maneira informal que o caracteriza, disse que era um prazer estar ali etc., acrescentando que acompanhava-o um escritor brasileiro, conhecido por seus livros sobre temática judaica.
Informação problemática, como vocês podem imaginar, e quem sabe até imprudente, tanto que, por um momento fez-se silêncio, tenso silêncio.
Mas logo o representante palestino olhou para mim, abriu os braços e bradou alegremente:
— Primo!
Não foi exatamente primo que ele disse, e sim "brimo", mas aquilo quebrou o gelo. De imediato, nos abraçamos e ficamos ali por uma boa meia hora, batendo papo.
Lembrei disso há uns dias quando a Editora Record lançou um livro chamado, exatamente, Primos. Trata-se de uma coletânea de contos, organizada por Tatiana Salem Levy e Adriana Armony (bom sobrenome para uma promotora de harmonia), que, com essa ideia, tiveram mais sucesso que o presidente Lula na sua recente iniciativa de paz. Os autores da obra, entre os quais me incluo, são escritores brasileiros de ascendência árabe ou judaica: entre eles estão os gaúchos Carlos Nejar, Cíntia Moscovich, Fabrício Carpinejar, Leandro Sarmatz e o catarinense Salim Miguel.
Uma iniciativa original e importante. Em primeiro lugar, mostra que o Brasil, mais ainda que os Estados Unidos, onde a expressão se originou, é o legítimo "melting pot", o caldeirão de mistura cultural e étnica.
Todos nós, os índios inclusive, temos origem próxima ou remota em algum outro lugar da Terra. E todos nós temos alguma contribuição a dar para a cultura brasileira. A imigração é um importante tema em nossa literatura, e tem dado belas obras.
Mas há também o significado político, resultante do conflito do Oriente Médio. É um conflito que resulta de, e está marcado por, preconceitos e ideias errôneas. Uma delas, a mais perigosa de todas: árabes e judeus não podem conviver; existe entre os dois uma incompatibilidade visceral, insuperável.
Bobagem. Todos sabem que essa convivência não só é possível, como resultou em grandes avanços políticos, científicos, culturais. Um exemplo é o de Maimônides, que, no século 12, foi médico do sultão Saladino. Maimônides era filósofo, escreveu obras fundamentais para o judaísmo - publicadas em árabe. Na península ibérica, a convivência durou vários séculos. E não precisamos ir longe: aqui em Porto Alegre (e a rua Voluntários da Pátria era disso um exemplo), comerciantes judeus, sírios, libaneses conviviam amistosamente.
Há uma briga no Oriente Médio, uma briga que se traduz em conflitos bélicos, em ocupação, em terrorismo. Mas é, ao fim e ao cabo, uma briga de família, uma briga de primos. Brigas de família podem ser violentas, e, no caso, é o que infelizmente acontece (ocupação, terrorismo), mas podem também ser resolvidas. Quando conseguem colocar um pouco de racionalidade acima da intolerância, do preconceito, dos interesses passageiros, as pessoas acabam se entendendo. Não são poucas as experiências de convivência entre palestinos e israelenses. O livro Primos não é a primeira iniciativa neste sentido. E, esperamos, não será a última.
Zero Hora (RS), 30/5/2010