Terceirizar a vida privada. A lógica do mercado atinge a vida íntima: há um "personal" para praticamente qualquer atividade cotidiana. Folha Equilíbrio, 18.08. 2005
Ela já ouvira falar de "personal trainer", o professor de ginástica que atende individualmente. Também já ouvira falar de "personal dancer", "personal dieter", "personal shopper" (este, alguém que se encarrega de fazer compras). Mas ficou absolutamente fascinada quando uma amiga lhe falou do "personal husband", o marido personalizado. Era uma coisa da qual, a propósito, estava precisando: o marido, alto executivo de uma grande corporação, viajava muito; e, mesmo quando estava em casa, as relações entre ambos -depois de tantos anos de matrimônio- eram no máximo formais. Ela se entediava, passava longos períodos de tempo sozinha: os filhos, já adultos, moravam em outra cidade.
Cautelosamente, falou do assunto ao esposo; disse que gostaria de ter companhia, mas a companhia de uma pessoa que fizesse isso em caráter estritamente profissional. O homem, naquele momento absorto na leitura do jornal, não deu muita importância à solicitação. Vá em frente, disse. Ela foi em frente. Entrou em contato com a empresa que fornecia os profissionais e assim recebeu seu marido personalizado.
Era um homem de meia-idade, alto, elegante, bonito. E muito culto; no passado, tinha sido professor universitário, trabalho que deixara por causa dos baixos salários. Agora dedicava-se por completo a exercer a condição marital. A primeira coisa que fez, logo depois de se apresentar, foi entregar o contrato de prestação de serviços, minuciosamente descritos. Serviços que, entre parênteses, ele fazia questão de prestar com a maior competência e boa vontade, como ela constatou nas semanas que se seguiram. O "personal husband" vinha todos os dias; saíam para passear, para almoçar, iam ao teatro. Conversavam muito. Era um grande papo, ele, um homem versado numa imensa variedade de assuntos.
E ah, sim, sexo. Isso não estava previsto no contrato; como dissera a amiga, "personal husband" não era a mesma coisa que amante, mesmo porque amantes fazem exigências emocionais, amantes têm ciúmes -coisas absolutamente incompatíveis com uma relação essencialmente profissional. Se ela quisesse, claro, ele poderia prover isso também, mediante um acréscimo no pagamento. Mas ela não queria; pretendia apenas a companhia que o marido verdadeiro não lhe dava, e isso o homem provia muito bem.
A verdade, porém, é que ela se sentia curiosa: quem seria, afinal, aquele estranho personagem? Teria família, mulher, filhos? Ele nunca falava sobre si próprio (não estava no contrato), de modo que, para descobrir alguma coisa a respeito, ela resolveu segui-lo. Uma noite, quando ele saiu da casa em seu modesto carro, ela tomou um táxi e foi atrás. Andaram muito tempo, chegaram até um bairro distante. Diante de uma casa pequena, modesta, ele estacionou e entrou.
Do táxi, ela podia vê-lo, no living, ao lado da esposa, os dois diante da tevê. Não falavam. A mulher, um tipo comum, parecia resignada com sua condição - como ela própria estivera durante muito tempo.
Lá pelas tantas ele se levantou, saiu da sala; estava na hora de dormir, decerto, o dia seguinte seria de trabalho. A esposa ficou sentada, diante da tevê agora desligada, o olhar perdido.
Sem dúvida estava pensando num "personal husband".
Folha de São Paulo (São Paulo) 22/08/2005