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Patriotismo

 

Em tempos em que o patriotismo voltou a ter grande apelo, em alguns casos puramente eleitoral, em outros de demagogia pura, a afirmação do diretor do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República, Raphael Mandarino sobre a espionagem entre governos veio dar um tom épico ao debate, mas com um viés pragmático que estava fazendo falta.

Disse ele, em depoimento na Câmara, que articulações de cunho político e diplomático na ONU, como propõem a presidente brasileira Dilma Rousseff e a chanceler alemã Ângela Merkel não são eficazes nesse tipo de ação "porque a espionagem segue a ética de Estado. Espião até mata se for preciso defender seu país".

Citando indiretamente, e não sei se intencionalmente, o sociólogo alemão Max Weber, que fez a distinção entre a “ética da convicção”, dos princípios morais aceitos em cada sociedade, e a “ética da responsabilidade”, que prevalece na atividade política, Mandarino comentou que "a ética de Estado é completamente [diferente] da ética que temos, do cidadão comum. E não há tratado que resolva isso".

Na sua concepção, interesses do Estado e o interesse econômico sempre vão prevalecer. O que temos é que nos defender, começando por um sistema criptográfico que proteja as redes de comunicações mais sensíveis. Essa visão quase tecnocrática da espionagem serve para recolocar a questão no ponto certo e retirar a parcela emocional que tomou conta da discussão quando os documentos divulgados pelo Fantástico, com base no vazamento de dados de Edward Snowden, mostraram que a agência de espionagem americana andou trabalhando ativamente no Brasil, com espionagem sobre o pré-sal e monitoramento até mesmo das conversas da própria presidente Dilma.

A atitude do governo foi correta em todo o episódio, pois não se pode aceitar como naturais, quando reveladas publicamente, atividades que se sabe naturais, mas nos bastidores governamentais. Mas houve um inegável aproveitamento político-eleitoral do episódio. A revelação pela Folha de S. Paulo de que também o Brasil andou espionando representantes de outros governos no início da administração Lula - e não há nada que indique que essa espionagem à brasileira não continue - perdemos a força do argumento, embora possamos ainda dizer que são situações incomparáveis, como frisaram a própria presidente e o ministro da Justiça.

Mas são incomparáveis apenas pela falta de estrutura da Agência Brasileira de Inteligência, e não pelo conceito em si que, como diz o diretor do GSI, é uma questão de Estado e não há regra ou acordo político que mude a essência desse trabalho.

Assim como atribuí-se a uma necessidade de defesa nacional a "contraespionagem" brasileira, o pretexto alegado pelos Estados Unidos ou outro país qualquer que seja apanhado nessa atividade será o mesmo. Vigiar a Tríplice Fronteira, ou o pré-sal brasileiro tem tanta importância para a segurança nacional dos Estados Unidos quanto a Abin grampear uns telefones de representantes de países que possam estar agindo contra nossos interesses econômicos.

Até mesmo a discussão sobre a prevalência ou não do Estado-Nação no mundo globalizado passa pelo patriotismo, com os defensores da globalização sendo considerados antipatrióticos. 

Também nos esportes, em tempo de Copa do Mundo, os ânimos patrióticos andam exaltados. A recusa do jogador Diego Costa em usar a camisa canarinho, preferindo a Fúria espanhola, levou à loucura o presidente da CBF José Maria Marin que, para desviar a discussão dos graves problemas que sua entidade tem, ameaçou até cassar a nacionalidade do jogador, como se isso fosse possível. O próprio treinador Felipão ficou indignado quando lembrado que ele também já treinou a seleção de Portugal, e colocou nela Deco, um brasileiro naturalizado português.

Agora é Ronaldo Fenômeno quem critica Romário por suas críticas à Copa do Mundo, querendo-se "mais patriótico" do que o hoje deputado. Seria exagero lembrar a frase famosa de Samuel Johnson sobre ser o patriotismo o último refúgio dos canalhas para todos os casos em pauta. 

Como se vê, porém, o patriotismo é sempre uma boa bengala e pode render popularidade e bons frutos eleitorais, mas há sempre um outro lado, surge uma outra versão, para mostrar que nem tudo é como se propagandeia.

 

 

O Globo, 7/11/2013