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Palavra mágica

 

O Ministério do Trabalho desativou temporariamente o sistema de consulta ao seguro-desemprego na internet, após um usuário ter tido de digitar a palavra "vagabundo" no sistema de verificação do site do órgão. O internauta, que está sem trabalho, entrou no site para consultar sobre seu pedido de seguro-desemprego e, para prosseguir, teve de digitar a palavra no campo em branco. O site do ministério usa um sistema para verificar se quem está fazendo a consulta é uma pessoa ou um software. Segundo Jorge Henrique Fernandes, do departamento de Ciência da Computação da UnB, é possível que um hacker tenha invadido o sistema e alterado a lista de palavras. O Ministério pediu desculpas pelo inconveniente.

Dinheiro, 16 de julho de 2009


A PRIMEIRA reação dele, ao constatar que precisava digitar a palavra "vagabundo" para ter acesso ao site, foi de indignação. Que história era aquela? Já não bastava a humilhação de estar desempregado, ainda era obrigado a usar um termo seguramente ofensivo? Tão furioso ficou, que de imediato desistiu da informação. Os organizadores do site que ficassem com seu seguro-desemprego. Apesar de tudo, ele tinha sua dignidade. Não voltaria mais a acessar o tal site.


A esposa -eram recém-casados e ela, professora, garantia o precário sustento dos dois- notou a perturbação do rapaz e quis saber o que tinha acontecido. Ele desconversou, disse que estava com dor de cabeça.


Ela, mulher sensível, não perguntou mais nada. Não queria aumentar o sofrimento do marido. Desde que ele perdera o emprego andava com os nervos à flor da pele; precisava de ajuda, não de questionamentos.


Naquela noite ele não dormiu. Virava-se de um lado para outro, na cama, até que por fim não aguentou mais: levantou-se, vestiu-se, e saiu para dar uma caminhada.


O ar fresco da madrugada fez-lhe bem. Mais calmo, dava-se conta de que fizera bobagem não entrando no site. Afinal, talvez a palavra "vagabundo" tivesse sido escolhida por acaso, dentro de uma lista padronizada de palavras-chave.


Talvez aquilo fosse obra de um hacker, ou mesmo de um funcionário metido a engraçado. E talvez -mas essa ideia o surpreendeu- a palavra tivesse sido selecionada em decorrência de algum raciocínio psicológico, com um propósito específico: dar-lhe um choque de realidade, capaz de fazê-lo pensar sobre sua situação, de engajá-lo num processo de mudança.


O que fazia sentido. Afinal, ele não era um software, era uma pessoa.

Softwares não pensam, não têm sentimentos. Pessoas pensam e têm sentimentos. Pessoas têm dignidade, pessoas podem virar a mesa quando necessário.


Estava amanhecendo quando voltou para o apartamento. Correu para o computador, ligou-o, e, excitado, preparou-se para digitar "vagabundo".


Para sua surpresa, a senha tinha mudado. E a razão para isso era evidente: alguém que, como ele, ficara ofendido, havia protestado, e a palavra fora por isso retirada do site.


Agora ele está empregado -como digitador- e não precisa de seguro.

Mas, de vez em quando, abre o computador e digita a palavra "vagabundo". Um mantra, uma palavra mágica? Talvez. Mas ele não quer saber do que se trata.


Só quer digitar. Só quer acabar com o vagabundo potencial que, dentro dele, espera pelo momento de voltar ao site do desemprego.


Folha de S. Paulo, 20/7/2009